Notas para uma nova relação filosófica entre o material e imaterial
Para os povos não-ocidentais a relação com a natureza não é exatamente uma relação. Os corpos humanos são tão parte do (que a cultura ocidental convencionou chamar de) meio ambiente quanto a água dos rios, o vento, as árvores e os animais irracionais. Assim, o planeta é tido como uma imensa casa coletiva, onde cada ser animado, inanimado, material ou etéreo tem funções bem definidas e interdependentes.
Mesmo com o advento do sistema exploratório iniciado a partir das Grandes Navegações que culminou na invasão predatória das Américas, África e Ásia e nos processos coloniais e imperialistas, as sociedades cujo padrão é a coletividade realizam a manutenção do seu modelo originário. Nesse sentido, vou discorrer a respeito da compreensão sobre a caça, predador e presa a partir do elemento das matas e do vento, sintetizados na figura da divindade conhecida como Oxóssi no território do Rio de Janeiro, na tradição dos Yorubá que fundamenta a Umbanda; e dos guerreiros que pertencem à etnia indígena dos Tupinambá, reconhecidos em sua maioria nos litorais fluminenses. Oxóssi reina de Norte a Sul: Na Bahia é São Jorge, no Rio São Sebastião* De início, o ator principal precisa das honrarias de apresentação, numa tentativa de aproximar o leitor da sua trajetória no chão brasileiro. Na Umbanda carioca, o Rei das matas e aglutinador de todos os espíritos dos caboclos/indígenas é batizado com o nome de Oxóssi, mas para o Candomblé - sobretudo o baiano, que tem muita influência dos povos Banto -, o orixá é conhecido como Odé, pois é o nome original na língua-mãe. Parafraseando o samba-ponto de macumba, Oxóssi é o caçador-líder que comanda as matas fechadas, conhecedor dos caminhos para a prosperidade e provedor do alimento para a comunidade. Como forma de preservar o encantamento da vida [1] e numa tecnologia de combate ao aculturamento, as famílias étnicas [2] misturaram na mesma cabaça os santos católicos e os orixás africanos, aproximando-os através de características mitológicas em comum. Como os mitos são recriados, refundados e reinterpretados a todo o momento, os baianos sincretizaram Odé com São Jorge, o santo guerreiro; já os fluminenses sincretizaram Oxóssi com São Sebastião, o santo que lutou contra os franceses e ao lado dos indígenas (distinto do guerreiro romano). Para os leitores de tambor, o orixá também conta sua história através do ritmo Aguerê, presente no toque das caixas das baterias da Mocidade Independente de Padre Miguel e da Portela. Diferentemente da tradição europeia, os deuses da pele preta dançam e imprimem sua gramática também na musicalidade [3], sobretudo no couro dos tambores: seja o surdo, o timbal, rum, rumpi ou lé. Atira, caboclo, atira / atira no rastro do outro** A caça obedece a princípios fundamentais que vão desde a sua preparação até atos após as refeições. Para quem vive da/na mata, existe uma simbiose onde todo ser materialmente vivo (desconsidera-se, aqui, elementos etéreos e cosmológicos, e vivente é todo ser que respira) é ao mesmo tempo caça e caçador. Muito distinta de qualquer perspectiva predatória de matar ou aniquilar simbolicamente o outro apenas para garantir a própria sobrevivência, essas comunidades se mantêm em profundo respeito e coexistência com tudo que é extra corpóreo. Pede-se licença à terra antes de pisá-la, como ao entrar na casa de alguém; ritualiza-se a morte do alimento, seja ele planta ou bicho; cada passo é dado a partir de profunda compreensão sobre si e sobre o outro. O caçador sai da aldeia [4] munido de arco, flecha, lança e faca. Delimita uma rota até o ponto onde conhece o território, e, portanto, do que se alimenta a sua caça. Não são todos os animais que servem de alimento, então há alguma dimensão de biopoder [5] que justifica a preservação, o fundamento e a relevância de determinadas espécies em detrimento de outras. Entretanto, ressalto a impossibilidade de adequação total ao conceito Foucaultiano: não se trata de especismo ou hierarquia sob o prisma inerente ao juízo de valor racional do que/quem merece viver, mas sim entendimento sobre os ciclos e regras impostas pela natureza enquanto conjunto harmônico de todas as espécies. Para uma vida plena, o caçador não pode ultrapassar qualquer dessas leis, porque automaticamente ele estaria atentando contra a própria existência: ao matar um animal fora de sua época ou uma fêmea em período reprodutivo, p. ex., afeta a sobrevivência de todo ser vivo que integra aquela cadeia, incluindo ele mesmo. Assim, o desequilíbrio produzido pela balança da biopolítica entre grupos sociais não encontra correspondente na mata, pois a morte logo se transforma em ritual que deságua no alimento consagrado. Tupinambá é Pai de terreiro / Tupinambá é quem vem nos ajudar*** Pode parecer estranho para uma sociedade domesticada pelo colonialismo e pela produção da morte física enquanto produção do desencanto do ser [6], mas a transformação da matéria em energia dissipada pelo ar não desonra ou apaga aquele/aquilo que esteve vivo um dia. O que ceifa vidas e sociabilidades profundamente é o desenvolvimento destrutivista [7], um predador voraz que não enxerga sequer o animal semelhante, quiçá o outro. Partindo da distinção homem vs. natureza consolidada pelo movimento iluminista, o acúmulo de riquezas efêmeras é a base do sistema que mata o avô dos Krenak, o Rio Doce [8]. Os povos Tupinambá antes de serem dizimados por doenças e pelo genocídio perpetrado por personagens como Estácio de Sá, eram guerreiros que construíam uma relação permeada pelo respeito inclusive contra seus inimigos. Ao vencerem uma batalha, davam início ao ritual antropofágico que consistia basicamente em banhar o vencido com ervas específicas após a sua morte, cozinha-lo e alimentar a comunidade com partes do corpo que continham qualidades e valores admiráveis daquele humano, sejam físicas ou não. Nesse processo de resistência às violências coloniais, negros e índios se uniram e esta união se refletiu também nas religiosidades cariocas. Portanto, não é incomum encontrar com espíritos Tupinambás que ‘baixam’ nas Umbandas do Rio de Janeiro para praticarem a caridade e seguirem cuidando de suas famílias étnicas além-mundo. Estas são apenas algumas das milhares de pistas possíveis para que possamos buscar uma filosofia que esteja profundamente ancorada na relação caça-caçador desenvolvida pelas diversas tecnologias e epistemes afro-ameríndias localizadas na América Latina; ao invés do binarismo predador-presa, reforçada pela ideia de aniquilamento de tudo aquilo que não faz parte do encaixotamento de sentidos que vem da invasão colonial. Assim, tenho que a construção do novo-velho mundo deve ser alicerçada na integração comum e na pluralidade de sabenças. Para romper com o extremo controle, vigilância e desencanto que se aproximam da realidade, é preciso voltar ao começo [9]. Texto de: Giulia Soares *Ruy Maurity. Nem ouro, nem prata. Toninho Geraes. Saudação à Oxóssi. ** Ponto cantado de caboclo. Todo mundo quer Umbanda. *** Idem [1] SIMAS, Luiz Antônio e RUFINO, Luiz. Fogo no mato: a ciência encantada das macumbas. Rio de Janeiro: Mórula, 2018. [2] "A ideia de designar como parentes as pessoas do mesmo grupo étnico vem de longo tempo. Nos cantos, juntas de alforria, candomblés e nas próprias casas das tias, essa família faz-se presente. Meninazinha de Oxum, falando sobre sua avó, diz que as pessoas que frequentaram sua casa eram consideradas parentes: 'Minha avó era mãe de todos eles. Era mãe de todo mundo (...) O interessante é que eu, menina, achava que era isso mesmo. Que eles eram parentes mesmo. Via aquela consideração e aquele respeito de filho para mãe...'". Para ver mais: VELLOSO, Mônica Pimenta. As tias baianas tomam conta do espaço: espaço e identidade cultural no Rio de Janeiro. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 3, n. 6, 1990, p.207-228. [3] Mestre Miquimba, da Mocidade Independente de Padre Miguel, chamava a invenção do toque do surdo de terceira de 'imaginação percussiva', no que Simas emenda naquilo que denomina enquanto gramática dos tambores. Para ver mais: SIMAS, Luiz Antônio. O corpo encantado das ruas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2019, 1ª edição, p 25-32. [4] Noção de aldeiamento indígena que também está presente no aquilombamento dos africanos escravizados. [5] Michel Foucault. A Vontade de Saber. Rio de Janeiro: Graal, 1977. [6] Conforme afirma Luiz Antônio Simas, "há mortos muito mais vivos que os vivos e vivos que estão muito mais mortos que os mortos". [7] Chico César. Reis do agronegócio. Estado de Poesia. São Paulo: Urban Jungle, 2015. [8] Disponível em: https://oglobo.globo.com/sociedade/ailton-krenak-compartilhasabedoria-dos-povos-da-floresta-para-adiar-fim-do-mundo-23869645 [9] Emicida. Intro – É necessário voltar ao começo. Doozicabraba e a Revolução Silenciosa São Paulo: Laboratório Fantasma, 2011.