“Onde uma vida não tem nenhuma chance de florescer é onde devemos nos esforçar para melhorar as condições de vida” (BUTLER, 2019, p. 43)
Texto de Roberta Mendonça (PPGD/UERJ)
O Núcleo de Estudos do Comum – NEC, vinculado à Universidade Federal de Santa Maria – UFSM, coordenado pelo Professor Doutor Fernando Hoffman, promoveu no dia 05 de maio de 2021 o Webniário “Biopolíticas em Comum”, e contou com a participação da Professora Doutora Carla Rodrigues (UFRJ), uma das principais revisoras técnicas das obras de Judith Butler traduzidas para o português. Participou ainda, como debatedor, o Professor Doutor Maiquel Wermuth (UNIJUÍ). Assim, o texto que segue reúne algumas impressões e pressupostos a partir da conferência apresentada pela professora, intitulada “Violência, Luto e Precariedade: da biopolítica à necropolítica a partir de Judith Butler”.
Imagens: Luciana Siebert
A introdução proposta da fala referiu-se à explicação sobre o título proposto. A pesquisadora pontou que, embora pudesse parecer pretencioso, os termos “violência, luto e precariedade” se relacionam durante toda a obra da Judith Butler e, de tal modo, a dificuldade de escolha de uma só expressão a acompanhava, uma vez que entende enquanto “intercambiáveis”.
O caminho teórico percorrido durante a conferência ressaltou a “distribuição desigual do luto público”, lembrando e mencionando-se a morte do ator Paulo Gustavo – vítima da Covid – como forma de pensar como a morte de uma figura pública causa na sociedade dada comoção, diferente de outras vidas vulneráveis. Uma vez que mais de 516.000 mil pessoas também morreram em decorrência do vírus, tal acontecimento, portanto, retiraria a sociedade de uma espécie de “anestesia […] falsa normalidade” em razão das inúmeras mortes.
As reflexões realizadas pela professora são organizadas a partir da premissa de como seria possível estabelecer quais seriam os indivíduos passíveis de luto e como as políticas de Estado são organizadas no sentido de demarcar quais vidas merecem ser vividas. Afinal, no livro “Quadros de Guerra”, Butler (2019, p. 16) aponta que: “a capacidade epistemológica de apreender uma vida é parcialmente dependente de que essa vida seja produzida de acordo com as normas que a caracterizam como uma vida, ou melhor dizendo, como parte da vida”. Nesse sentido, uma vida só é considerada quando, e se, se insere em determinados enquadramentos, os quais forjam o sujeito e, igualmente, quais vidas são passíveis de reconhecimento e, consequentemente, de luto.
Continuando suas ponderações acerca do luto, a professora Carla Rodrigues observa que a “morte banal é uma violência que nos constitui historicamente e ainda se faz presente”. Afirma que é uma violência articulada com a abjeção[1] e cita que “na Filosofia, a relação entre o eu e o objeto pensaria as condições que constituem o sujeito”. Para ela, a noção de abjeção é importante para problematizar a relação entre luto, violência e precariedade, sendo necessário pontuar que a abjeção é um termo construído e modelado por Judith Butler ao longo de seus escritos, sendo fortemente relacionado à fluidez que é característica de suas ideias e escrita. Assim, a precariedade é relacionada com os discursos de poder que reforçam um (não)lugar de algumas vidas.
Ao longo das considerações que perfazem a fala da professora Carla Rodrigues dado argumento se sobressai quanto às premissas por ela lançadas: “a racionalidade neoliberal empurra certas formas de vida, certos corpos para fora do campo da inteligibilidade tornando essas vidas não enlutáveis e, portanto, tornando essas vidas (não)vidas mesmo para aqueles que estão vivos”. Dessa maneira, “há ‘sujeitos’ que não são exatamente reconhecíveis como sujeitos e há ‘vidas’ que dificilmente — ou, melhor dizendo, nunca — são reconhecidas como vidas” (BUTLER, 2019, p. 17).
Uma outra questão apresentada no referido evento é: “Como pode existir um grupo de humanos que não são considerados como humanos?”
O questionamento, de difícil solução, pode ser refletido com base em alguns pressupostos que valorizem marcadores de gênero, classe e raça que, comumente, apresentam-se enquanto fatores determinantes à marginalização de determinados grupos. Para além disso, algumas políticas de Estado são ferramentas de segregação de pessoas que acabam por não corresponder a determinados padrões sociais hegemônicos, os enquadramentos referidos por Judith Butler.
Um fator preponderante é, então, pensar nas “condições sociais de sobrevivência” que se colocam para essas vidas, que são tais condições que podem torná-las precárias ou não. As condições sociais e políticas, assim, são imprescindíveis para tornar uma vida “vivível” (BUTLER, 2019).
Nesse caminho, a ideia de inumano é cara para a discussão. A conferência em questão alude à premissa de que a “separação originária entre humanos e inumanos ainda está em vigor, de diversas maneiras, em uma atualização permanente”. É a partir da religião, raça, gênero, orientação sexual e outros aspectos, que inserem os sujeitos em enquadramentos, que produzem as margens e polos de resistência, que a referida problemática acontece.
A professora Carla Rodrigues propôs o encontro teórico entre Butler e Mbembe que, para ela, se fez quando, em 2012, Butler ganhou o “Prêmio Adorno” e sugeriu a articulação entre as categorias ‘luto’ e ‘biopolítica’. Em seu discurso, Butler apontou como se constroem as noções de vida que são indignas de luto, vidas que, se perdidas, não irão gerar comoção alguma, pois são dispensáveis, não vivíveis. Ao discutir sobre biopolítica, Judith Butler ressaltou: “entendo aqueles poderes que organizam a vida, inclusive os poderes que diferenciadamente descartam vidas à condição precária […] e que estabelecem um conjunto de medidas para a avaliação diferencial da vida em si” (BRETAS, 2018, p. 215).
Butler ainda questionou acerca das vidas que já são percebidas enquanto indignas de luto, e como essas pessoas se sentiam em relação a esse (não)lugar que ocupam, sobretudo nas sociedades ocidentais, vidas que não são protegidas ou valorizadas. Ainda problematizou se seria possível refundar a referida realidade, chegando à seguinte conclusão: “[…] sim, o indigno de luto se reúne às vezes em insurgências públicas de lamentação, razão pela qual em tantos países é difícil distinguir o funeral da manifestação” (BRETAS, 2018, p. 126).
Ter a vida considerada enquanto não passível de luto faz com que os indivíduos, muitas vezes, não se reconheçam enquanto sujeitos e, assim, considerem suas vivências sem valor. Tornam-se sujeitos que “no tienen la oportunidad de representarse corren mayores riesgos de ser tratados como menos que humanos, considerados menos que humanos, o diretamente no tomados en cuenta” (BUTLER, 2006, p. 176)
Aproximando-se da discussão do filósofo camaronês Joseph-Achille Mbembe, a professora Carla Rodrigues lembra das expressões que o autor utiliza, “mundos de morte”, “mortos vivos”, vidas que não produzem tanta indignação quanto a morte de uma pessoa pública. Assim como que “a dignidade do luto não está no momento da morte, a dignidade do luto por uma vida está enquanto essa vida está sendo vivida”. Para a professora, os mortos vivos citados por Mbembe interessam a Judith Butler, pois, nas leituras sugeridas por Butler, a racionalidade liberal produz mortos vivos.
A professora Carla Rodrigues sugere que é partir de uma aproximação com o pensamento de Mbembe que Butler reconhece que a biopolítica, de Michel Foucault, torna-se insuficiente para pensar a violência colonial e neocolonial. Para ela, é possível vislumbrar esse momento no livro “The Force of Nonviolence: An Ethico-Political” publicado por Butler.
A hipótese construída por Carla Rodrigues é de que, para Butler, existe uma insuficiência no pensamento de Michel Foucault sobre a biopolítica, sendo precisoperseguir tal insuficiência, revisando os escritos do filósofo. Na busca para compreender a questão formulada por Butler, apontando a insuficiência da biopolítica, Carla Rodrigues articula que consiste no fato de que “Foucault pensa os dispositivos estatais de biopoder como mecanismos através dos quais o estado moderno faz a gestão do fazer morrer e deixar viver”.
Os caminhos percorridos pela professora Carla Rodrigues são de que o que interessa para Butler é que as pessoas submetidas à biopolítica já estão forçadamente integradas a um poder no qual as suas vidas são forjadas por um “fazer morrer e deixar viver”. Que existem pessoas que estão excluídas de qualquer sistema, que para essas pessoas, só há a possibilidade de viver como mortos-vivos, nos termos sugeridos por Mbembe: “vida humanas, mas tidas como não-humanas”. Eis que, para ela, o direito ao luto “é um mecanismo de eliminação entre a distinção entre humanos e inumanos, por isso, para Butler, o luto precede a noção de morte”.
Carla Rodrigues conclui a sua conferência pontuando que “todos os indivíduos já estão dentro de uma política de Estado, ainda que seja uma política de ‘fazem morrer’, sendo possível também pensar nos sujeitos que têm direito a ter direitos. Existem sujeitos que sequer têm direito a morrer, poque são vidas vividas como se não fossem vidas”.
Referências
BUTLER, Judith. Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto? – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2019.
BUTLER, Judith. Vida precaria: el poder del duelo y la violência. Buenos Aires: Paidós, 2006.
BRETAS, Aléxia Cruz. Pode-se levar uma vida boa em uma vida ruim? Judith Butler. Cadernos de Ética e Filosofia Política, n. 2, vol. 33, p. 213-229. https://doi.org/10.11606/issn.1517-0128.v2i33p213-229
[1] Nas palavras da professora Carla Rodrigues abjeto “é aquele é eu que não se identifica como sujeito nem como objeto”. A discussão está presente no livro “Corpos que Importam”, de Judith Butler