Para entendermos um autor, devemos nos afastar da apreensão imediata do conteúdo que ele expressa com palavras e nos apoiarmos nos indícios que ele nos dá acerca da forma como devem ser compreendidas estas palavras, ou seja, da indicação que ele nos dá acerca da tradição a que pertence. Grégoire Chamayou o faz de forma bastante clara em sua obra Manhunts: A Philosophical History, ao dizer que pretende pensar a partir da posição da vítima, a partir da posição da presa.
Pensar a partir da posição da presa pode ser um pouco problemático, porque envolve essencializar uma posição e projetá-la em outros sujeitos, conformando individualidades e grupos às formas estabelecidas desta posição, mormente à forma do sofredor e do sofrimento, ou, em uma reabilitação menos passiva, a do resistente. Este caráter problemático se expressa em dois sentidos.
Em um primeiro sentido, sendo essencialmente ideológica (ou seja, desvinculada de uma relação direta com a reflexão filosófica, uma vez que situada em um espaço abstraído, que impede, se não o reconhecimento pelo próprio autor de seus limites epistemológicos [que ele, conhecendo, opta por esconder retoricamente], pelo menos a operação do juízo crítico do leitor sobre estes limites), ela é problemática no tanto que relega a um determinado sujeito a assunção absoluta do papel de um Outro, um “outro-presa” ou um “outro-caçador”. Esta se torna uma conclusão inescapável uma vez que o autor se debruça sobre a história das perseguições às “presas”, como se esta história constituísse a essência do perseguido ou ao menos uma grande parte desta essência. Assim, a história é a história dos perseguidores, que são responsáveis pela construção da figura da presa, que é mero apêndice – de forma que, se apagássemos a parcela do livro dedicado à atividade dos perseguidores, não haveria qualquer história da presa.
Isso não seria problemático se o autor tivesse dito que só comentaria alguns fatos que acha interessantes na história da violência humana contra seus semelhantes (uma semelhança que, para ele, é quase ontologicamente desconstruída – de forma bem afim a uma tradição problemática dentro do Cristianismo de compreensão do significado do Evangelho de São Mateus, 5:5, que afirma que são “[F]elizes os mansos/ porque herdarão a terra.” – como se fosse possível discernir mansos e violentos). Só que a presa, ao se definir a si mesma, não se define como um Outro, vez que esta é uma posição inatingível, uma vez que toda filosofia é feita a partir de um posicionamento histórico temporal-espacial, e o espaço do Outro é um espaço inatingível, vez que ninguém pode se definir como um Outro em relação a si mesmo. A “presa” só poderia se definir como um ser-em-si, que poderia se identificar até com a imagem de uma “presa”.
O problema político decorre que a imagem da “presa” não é uma imagem que se constitui ativamente, mas passivamente pelo fato de ser apresada. Um ser-em-si que se define por uma atividade desempenhada por outro está sempre atrelado discursivamente a este outro e, portanto, não consegue se constituir a si mesmo. A imaginação acadêmica contemporânea constituiu diversas imagens mais ou menos atreladas à imagem da presa, mas Chamayou parece inovador ao tentar pensar a imagem da presa como uma que pode ser vista através da história, como se Montezuma, tlatoani asteca quando da chegada de Cortéz, pudesse ser pensado como uma presa, assim como os judeus e os hereges medievais.
Estes exemplos não foram postos aqui à toa – todos eles são de grupos que se definiram a si mesmos linguisticamente de forma bem distinta da imagem da presa. Todos eles constituíam como o Outro aqueles que eventualmente eram seus apresadores, mas que para eles também eram muitas vezes presas. A questão de ser eventualmente presa os constituía tanto quanto constituía os que às vezes eram apresados, o que não era muito em nenhum dos casos. Pensar o império asteca pela chegada dos espanhóis, a história dos judeus pelo antissemitismo e os movimentos heréticos medievais pela Inquisição ou por qualquer outro movimento persecutório eclesiástico é um esforço histórico que só um sujeito bastante fluente no vocabulário moralizante próprio da religião (cristã – e que muitas vezes assola a Academia, travestido de moral laica, mas igualmente impróprio para ambientes onde a reflexão deve prevalecer sobre a ação) e, ao mesmo tempo, cego para aquilo que existe ou existiu no mundo, poderia fazer, relegando estes grupos à posição de perdedores, impotentes para se constituir distantes da imagem de presa, como se a batalha (se é que há uma) já estivesse perdida para um lado (como se, caso houvesse uma batalha, só fosse possível existir dois lados – caça e caçadores).
Em um segundo sentido, de fato só se pode pensar o que ele fez como um comentário a eventos que ele acha interessantes na história da violência humana contra seus semelhantes, eventos desconectados entre si e reconstruídos erradamente na palavra escrita. Se tudo que ele descreveu pode ser sem dúvida pensado como forma de opressão, dificilmente seria possível entender estes fatos como indistintos. Não se crê possível apreender plenamente (ou existencialmente) fatos ocorridos em um momento pretérito, mas sem dúvida é possível apreendê-los com maior ou menor acerto.
A própria imagem do opressor, do caçador maior, é construída pelo autor com base nas atividades do kyrios aristotélico do pai, do amo e do macho, essencialmente distintas para Aristóteles. É claro, os três papéis podem sempre ser vistos como opressores, mas mesmo as formas de opressão que eles podem adotar têm suas particularidades, adentrando a teoria da virtude enquanto meio termo desenvolvida pelo estagirita em seu Ética a Nicômaco. Faltou a Chamayou a sutileza para perceber que esta organização aristotélica dos papéis domésticos do chefe de família está vinculada a uma teoria de virtude que, mesmo que restasse substancialmente maculada por um caráter opressivo comum que Chamayou dá às diversas formas de opressão, não resta formalmente maculada por este caráter. Aqui, Aristóteles é mais cuidadoso que o próprio Chamayou, no tanto em que cria uma teoria na qual o controle sobre o quanto um comportamento é virtuoso ou não se dá de um modo quase que geométrico, podendo, portanto, a definição de meio termo ser alterada conforme mudam os tempos – como o próprio Aristóteles afirmava ser próprio da natureza humana em sua teoria do Direito Natural.
A confusão feita por Chamayou é fundada em uma apreensão simplista do real, no tanto que deriva de uma ideia de política que não envolve em alguma medida a discriminação, ou seja, o juízo – bastante de acordo com uma visão hobbesiana própria da modernidade que não concebe a possibilidade do homem se governar, mas o submete ao Leviatã e, consequentemente, dispensa o desenvolvimento no homem dos instrumentos necessários para o exercício desse juízo. Esta tendência nele pode se ver conforme, logo no início do segundo capítulo, quando ele cita uma passagem da obra Ensaio sobre a Origem das Línguas, de 1781 (publicado postumamente, mas escrito entre 1753 e 1764 e disponível aqui), qual seja, “[L]’histoire a souillé ses monumens des crimes de ces premiers rois; la guerre et les conquêtes ne sont que des chasses d’hommes”. A citação é parte de um argumento que Rousseau desenvolve sobre as etapas da civilização.
Rousseau adota a estrutura tripartite do desenvolvimento civilizacional então em voga entre os philosophes (estudada com alguma profundidade na obra Barbarian: Explorations of
a Western Concept in Theory, Literature, and the Arts, no artigo de Christian Moser sobre o conceito de bárbaro no século XVIII) relacionando o desenvolvimento civilizacional com forma de sustento. Assim, para Rousseau, cabia ao selvagem a caça, ao bárbaro, o pastoreio e, ao homem civilizado, a agricultura.
Curiosamente, em sua obra anterior e mais famosa, o Discurso sobre a Origem da Desigualdade, de 1755 (mas escrito em 1753), Rousseau não associou o bárbaro ao pastoreio, mas sim à agricultura em pequena escala. Esta mudança de posição pode ter se dado por diversos motivos, mas, creio, deriva mais da forma de composição e do caráter das obras, que não se pretendem tratados propriamente científicos, mas meras elucubrações sobre temas, o que não diminui sua importância para a história, mas nos lembra que devemos ter com Rousseau a mesma cautela que temos com Chamayou.
Rousseau escreve sua antropologia a partir de um ponto de vista engajado no debate político. Sua obra O Levita de Efraim, de 1781, é uma espécie de idílio sobre a vida dos patriarcas hebreus, vinculada ao pastoreio, como os bárbaros do Ensaio. No próprio Ensaio, Rousseau se refere aos “tempos de bárbarie” como a “Idade do Ouro” – é este mesmo sentimento que ele tenta fazer transparecer em seu Levita. No Ensaio ele diz:
Ces tems de barbarie étoient le siecle d’or, non parce que les hommes étoient unis, mais parce qu’ils étoient séparés. Chacun, dit-on, s’estimoit le maître de tout, cela peut être ; mais nul ne connoissoit & ne desiroit que ce qui étoit sous sa main : ses besoins, loin de le rapprocher de ses semblables l’en éloignoient. Les hommes, si l’on veut, s’attaquoient dans la rencontre, mais ils se rencontroient rarement. Par tout régnoit l’état de guerre, & toute la terre étoit en paix.
No Levita:
Dans les jours de liberté où nul ne régnoit sur le peuple du Seigneur, il fut un tems de licence où chacun, sans reconnoître ni magistrat ni juge, étoit seul son propre maitre et faisoit tout ce qui lui sembloit bon. Israël, alors épars dans le champs, avoit peu de grandes villes, et la simplicité de ses moeurs rendoit superflu l’empire des loix.
Em ambos estão constituídas as imagens do bárbaro e do patriarca bíblico como aquele que “governa” (na verdade, tratam-se de dominii sem dominados) um determinado território sem se submeter a nenhuma autoridade (a não ser à Divina, no último caso), o que permitiria, cremos, a aproximação entre estas duas imagens a partir da crença de que as definições amplas do Ensaio não concebem a possibilidade de existência de alguém que não se inclua nelas. Sabemos que o Levita não pode tratar da primeira idade porque Rousseau afirma, em seu Ensaio, que “[L]’âge patriarchal que nous connoissons est bien loin du premier âge.”
Ademais, o tempo do homem selvagem, para Rousseau, é um pouco mais complexo do que estamos acostumados a pensar. Ele distingue entre homme sauvage e homme civil ou civilisé em suas obras, mas também sem definir se o sauvage se refere só a premier âge ou se podemos pensa-la como se alongando no tempo do bárbaro. Esta dúvida é adequada porque também o termo bárbara (stupide barbarie) é usado para se referir ao momento em que os homens estão esparsos pelo vasto deserto do mundo. Mas, se a época bárbara era a época de ouro, como ela pode ser caracterizada por uma stupide barbarie? Isso é um indício que Rousseau não está lidando com termos muito definidos, mas utilizando-os com alguma liberdade.
Ademais, este homme sauvage é o que confundem com o Noble Savage, que surge, na verdade, na peça A Conquista de Granada (1672), de John Dryden. É claro que a ideia tem alguns antecedentes, dentre os quais os Canibais de Montaigne, e envolve o europeu voltando seu olhar para outras civilizações para caracterizar ou a decadência (no caso de Montaigne e de Rousseau – que viam o homme sauvage como um aristocrata sem a influência maléfica da civilização) ou a falta de progresso (como os Jesuítas e os Iluministas que viam no império chinês o reflexo de uma ordenação metafísica – racional ou Divina – no governo dos homens) da sua.
O discurso de Rousseau se engaja, então, de forma curiosa com o de Montesquieu e de Turgot (que falam da barbárie como algo a ser superado), seus principais debatedores neste tópico, mas também com o de Boulainvilliers (que Foucault traz para a discussão em seu Em Defesa da Sociedade). Boulainvillers e Rousseau olham para um passado bárbaro e o desejam, ainda que sejam passados diferentes. Rousseau, quando pensa no bárbaro enquanto personagem de um idílio, pensa no patriarca judeu, e não no bárbaro germânico invasor de Boulainvilliers.
Moser talvez estivesse pensando nisso quando estabelece uma divisão entre o bárbaro setentrional e o bárbaro meridional na obra de Rousseau, mas não cremos que a questão deva ser pensada a partir daí. Devemos pensar que Rousseau tinha uma relação dúbia com as grandes cidades de seu tempo, principalmente Paris, que ele ama e odeia (mas odeia mais do que ama, como atesta Richard Sennett em seu O Declínio do Homem Público). Este gosto se reflete nas imagens que ele valoriza. Este amor pelos grandes espaços encontra vazão na apologética bíblica contra as cidades, que ele reforça no Ensaio:
L’industrie humaine s’étend avec les besoins qui la font naître. Des trois manieres de vivre possibles à l’homme, savoir la chasse, le soin des troupeaux & l’agriculture, la premiere exerce le corps à la force, à l’adresse, à la course ; l’ame au courage, à la ruse ; elle endurcit l’homme & le rend féroce. Le pays des chasseurs n’est pas long-tems celui de la chasse, il faut poursuivre au loin le gibier, de-là l’équitation. Il faut atteindre le même gibier qui fuit ; de-là les armes légeres, la fronde, la flêche, le javelot. L’art pastoral, pere du repos et des passions oiseuses est celui qui se suffit le plus à lui-même. Il fournit à l’homme, presque sans peine, la vie & le vêtement ; il lui fournit même sa demeure ; les tentes des premiers bergers étoient faites de peaux de bêtes : le toît de l’arche & du tabernacle de Moïse n’étoit pas d’une autre étoffe. A l’égard de l’agriculture, plus lente à naître, elle tient à tous les arts ; elle amene la propriété, le gouvernement, les loix, & par degré la misere & les crimes, inséparables pour notre espece, de la science du bien & du mal. Aussi les Grecs ne regardoient-ils pas seulement Triptoleme comme l’inventeur d’un art utile, mais comme un instituteur & un sage, duquel ils tenoient leur premiere discipline & leurs premieres loix. Au contraire, Moïse semble porter un jugement d’improbation sur l’agriculture, en lui donnant un méchant pour inventeur & faisant rejetter de Dieu ses offrandes : on diroit que le premier laboureur annonçoit dans son caractere les mauvais effets de son art. L’auteur de la Genese avoit vu plus loin qu’Hérodote.
Neste curto parágrafo, resta indicado que a agricultura e a propriedade, mas também a cidade, levam a uma guerra generalizada, porque põe os não-proprietários contra os proprietários, sendo esta a origem do contrato social, proposto pelos proprietários, que já têm o que perder. O Contrato Social, em Rousseau, é menos algo a ser almejado que o sintoma de uma decadência humana. Mas quem são os “premiers Rois” da citação de Chamayou?
Eles são os plus actifs, les plus robustes, ceux qui alloient toujours en avant e ne pouvoient vivre que de fruits & de chasse; ils devinrent donc chasseurs, violens, sanguinaires ; puis avec le tems guerriers, conquérans, usurpateurs. Mas eles existem na premier âge? Por certo que não, vez que não existe, neste momento primordial, organização social não familiar. Mas é em uma nota sobre os nativos de São Domingos e das Tartarugas que ele afirma claramente que “[O]n ne voit point que les peres d’aucune nation nombreuse aient été chasseurs par état ; ils tous été agriculteurs ou bergers. La chasse doit donc moins être considérée ici comme ressource de subsistance que comme un accessoire de l’état pastoral”. Ou seja, é possível a permanência da caça fora do âmbito da vida do selvagem.
Assim, só podemos entender que a sociedade efetivamente se divide em duas entre os povos bárbaros: entre a maioria pastoril e uma minoria sanguinária – entre os patriarcas, representados exemplarmente por Abraão e Moisés, e Nimrod. Esta oposição é ressaltada na referência a Caim feita acima, Nimrod se tornando quase um novo Caim, responsável pela construção de cidades e um caçador.
É a esta tradição que se filia Chamayou. Ela, em si, é interessante enquanto capaz de criar imagens míticas tais quais as que Schmitt aponta no seu A Crise da Democracia Parlamentar, capazes de mobilizar os povos politicamente, mas não faz sentido se não for desvendada em suas raízes. Assim, esta introdução ao pensamento de Rousseau, sintetizador de tantas potências sociais com suas marcantes imagens, dentre as quais a imagem do selvagem, tão mal compreendida, serve para apontar a origem de uma série de associações do pensamento político moderno e mostrar o quanto o pensamento do próprio Rousseau, como o pensamento de Hobbes, estavam permeados do pensamento religioso.