Por Bruno Cava Rodrigues
Em toda obra de Dostoievski chega um momento que me traga pra dentro da narrativa. Em “Recordações da Casa dos Mortos”, é na parte da revolta na prisão. As reclamações dos presos sobre a comida escalam até a desobediência organizada. Mesmo sabendo da punição severa que se abateria sobre os participantes, o narrador-protagonista Goryanchikov resolve se unir aos rebelados. O entusiasmo de estar junto dos irmãos de cadeia é frustrado logo a seguir, quando Goryanchikov é rejeitado pelo grupo. Ele não pertence. Desolado, vai juntar-se aos presos que não aderiram ao movimento, na segurança da cozinha prisional.
O biógrafo mais copioso de Dostoievski, Joseph Frank, comentou como “Recordações da Casa dos Mortos” é pouco usual na obra do escritor russo. Diferente dos romances polifônicos, que vão de “Crime e Castigo” (1866) a “Irmãos Karamazov” (1880), em “Recordações da Casa dos Mortos” há uma quase identificação entre narrador, autor e protagonista. Com exceção do primeiro, todos os capítulos são narrados por Aleksandr Petrovich Goryanchikov, um fidalgo condenado a 10 anos de prisão na Sibéria. Ele conta a experiência na cadeia em primeira pessoa. A proximidade com a vivência de Dostoievski na temporada do escritor numa prisão siberiana não se dá apenas por ele ter escrito logo depois de voltar do exílio, como também pela semelhança entre os dramas pessoais de Goryanchikov e do próprio Dostoievski. Alguns comentadores dizem que, de todo o panteão de personagens, Goryanchikov é o mais vizinho à biografia de Dostoievski; que “Recordações da Casa dos Mortos” é uma ficcionalização direta da experiência pessoal; e que inclusive pode ser considerado o romance de formação do autor.
O que prende o leitor no capítulo da revolta na prisão — a mim pelo menos prendeu — é que até aquele clímax Goryanchikov tentava aproximar-se dos presos pobres ou mujiques, que constituíam a maioria dos encarcerados. Estar preso na Rússia significava que se era forçado a trabalhar, geralmente em vastos projetos de expansão colonial nas fronteiras remotas do Império. Todos recebiam o mesmo tratamento duro ao cumprir a pena. Goryanchikov era obrigado a carregar pedra como todos os outros, sem regalias devido à condição precedente de baixa nobreza alfabetizada.
Por força da sentença de condenação, Goryanchikov foi despojado de títulos, posses e privilégios, passando a conviver na mesma imundície e miséria dos outros presos. Mesmo assim, o narrador têm dificuldades em compreender e certamente de aceitar por que os presos não podiam considerá-lo como um semelhante. Nem mesmo no momento da revolta, em que ele se dispunha até a apanhar em nome do propósito comum de luta por melhores condições. Afinal, eram todos agora reduzidos a pobres diabos, por que raios não poderiam deixar a sua origem uma vez de lado? Simplesmente não podiam. É que um fosso invisível os separava, o fosso da divisão de classe. Rejeitado, conformado em esperar na cozinha, de onde começa a ouvir os guardas descendo o cacete nos revoltosos, Goryanchikov resmunga que, apesar de toda a provação cotidiana por que passava naquele inferno, jamais havia se sentido tão insultado. Aquilo tinha sido o mais degradante de tudo.
O desenrolo de “Recordações da Casa dos Mortos” por Dostoievski se dá como o documentarista que organiza o próprio encontro com um desconhecido que o fascina. Cada capítulo é um pequeno passo na direção do desvendamento do mistério, o desvelamento de uma essência comum que parece inalcançável. Os capítulos são sequenciados em função da jornada pessoal do narrador em busca dessa comunhão em meio ao sofrimento. O espaço da prisão, que é o espaço do sofrimento e do compartilhamento do sofrimento, dramatiza o autoesclarecimento progressivo de Goryanchikov, como uma conversão a conta gotas. Escrevendo bem depois, Dostoievski anota como os anos de prisão e exílio lhe trouxeram, a ele o autor, a regeneração de suas convicções, e como “Recordações da Casa dos Mortos” busca exprimir esse momento tão rico de sua compreensão do mundo e de si mesmo.
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Dostoievski nasceu e cresceu durante o longo reinado de Nicolau I, dos Romanov, que dirigiu a Rússia entre 1825 e 1855, sob o lema “Autocracia, ortodoxia, nacionalidade”. Na casa dos vinte anos de idade, Dostoievski participou de círculos de estudos em São Petersburgo com outros intelectuais da época que já eram ou se tornariam célebres. Em particular, ele era assíduo nas reuniões das sextas-feiras na casa de Mikhail Petrashevsky, onde se discutia filosofia, política e religião. Aos participantes era franqueado o acesso à biblioteca particular de Petrashevsky, repleta de literatura subversiva. Contornando os interditos do czar, devoravam tudo o que podiam vindo do Ocidente. Dos franceses, lia-se bastante de Saint-Simon, Fourier, Rousseau, Proudhon, Pierre Leroux ou, o favorito de Dostoievski, George Sand (pseudônimo de Amandine, a Baronesa de Dudevant). Dos alemães, liam Schelling, Hegel e os hegelianos de esquerda, com destaque para o incendiário “A essência do cristianismo”, de L. Feuerbach, objeto de muitas soirées pensantes na casa Petrashevsky.
Esse era um período de intensa agitação política pela Europa, que iria culminar na eclosão da primavera dos povos, o ciclo global de lutas de 1848. Sociedades secretas se multiplicavam pelas cidades, agregando estudantes, profissionais liberais e artistas. O Círculo Petrashevsky, com sua audiência flutuante e semiaberta, com variadas inclinações, não era exatamente revolucionário. Conta-se que se aglutinava ao redor de um programa mais ou menos vago pela reforma social da Rússia, sem violência ou tomada do poder, por meio de vidas exemplares e projetos educativos dirigidos ao povo. Era pouco para Dostoievski. Ele vai então se juntar a um pequeno spin-off do círculo original (o grupelho Speshnev). Esse sim, com pretensões conspiratoriais e propostas que, na Rússia daquela época, eram consideradas crimes de alta traição, tais como a abolição da servidão e o fim da autocracia. Os conspiradores juvenis não contavam que a Terceira Seção, a polícia secreta de Nicolau I, já tinha se infiltrado nas reuniões. Todos acabaram presos em abril de 1849.
Como os correligionários, Dostoievski foi condenado à morte por fuzilamento, mas teve a sentença comutada pelo czar. A comutação só foi comunicada aos condenados na ultimíssima hora. A polícia fez questão de simular toda a via crúcis até o local da execução, interrompida segundos antes da ordem de “fogo!”. Como pena alternativa, Dostoievski foi punido com a “morte civil” (perda dos direitos) e o aprisionamento num campo de trabalho em Omsk, na Sibéria. Em princípio, ele jamais poderia voltar aos centros europeus da Rússia. Quando terminasse a pena principal, ele não estaria livre, pois ainda deveria permanecer exilado o resto da vida na qualidade de colono. Contribuiria dessa forma nas regiões de fronteira, para a expansão do Império. Ele tinha 28 anos.
Dostoievski passa então quatro anos na Sibéria, basicamente carregando e quebrando pedra, abrindo estradas e canais. Os presos viviam amontoados em dormitórios infestados e cada banheiro era partilhado por cerca de duzentos detentos. Tudo evidentemente fedia e a sujeira chegava a acumular 5 cm de espessura onde quer que se pisasse. A temperatura no inverno descia a 20 graus celsius negativos, com epidemias frequentes. Proibido de ler e escrever, Dostoievski só poderia possuir um exemplar da bíblia, embora escapasse eventualmente para ler livros contrabandeados na enfermaria. Como era um preso político do czar, teve de passar os quatro anos arrastando grilhões afixados às mãos e aos pés. Epilético, com tosse crônica, subnutrido e sofrendo de hemorróidas terríveis, como ele sobreviveu a essa experiência é dos enigmas da biografia do escritor.
Solto da prisão em 1854, é ordenado a sentar praça no exército de fronteira, estacionado no Cazaquistão, onde começa a carreira militar como soldado raso. Sua primeira providência no exílio perpétuo é pedir que lhe enviassem livros de Kant, Hegel e Vico. Aos poucos, vai subindo na hierarquia e recebendo incumbências mais complexas. Em 1855, morre Nicolau I e a monarquia resolve iniciar um período de jubileus, o que pavimenta o caminho para o retorno. Depois de retratar-se por suas vinculações com os grupos conspiratórios, de um casamento que não deu certo e do agravamento da epilepsia, a sua rede de contatos permite que ele seja promovido ao posto de tenente. Ao alcançar esse posto, pelas regras do exército, Dostoievski passa a ter o direito a pedir baixa, o que ele faz de imediato. Com isso, em 1859, Dostoievski é liberado de qualquer pena adicional e volta a São Peterburgo, depois de passar uma década nos confins imperiais. Em 1861, será publicado “Recordações da Casa dos Mortos”, com grande repercussão.
O romance suscitou debates controversos no coração do Império, por descrever com realismo a condição dos presos. Era não somente o primeiro livro na Rússia escrito por alguém que tinha passado pela experiência, como o primeiro a narrar uma revolta contra a autoridade carcerária. Mas não foi isso que mais comoveu a geração de leitores de Dostoievski. “Recordações da Casa dos Mortos” dramatiza a crise do militante intelectualizado oriundo das camadas médias ao se deparar com o caráter esfíngico da Rússia profunda, do “narod”, por assim dizer, do povão. Entusiasmado por leituras revolucionárias em círculos literatos, pronto inclusive a morrer pelas ideologias que o possuía, espantava-se com a indiferença e até mesmo a antipatia que lhe eram retribuídas por parte da massa de mujiques analfabetos, que compunha o grosso da população e cuja libertação era a finalidade daquelas ideias mesmas. Nunca considerado um igual, mesmo ao sacrificar-se tão sinceramente por eles, e nunca realmente tido por digno de confiança. Eis a tensão dramática que o livro estica ao extremo. Para resolvê-la, o espaço dos sofrimentos prisionais é colocado para operar como teatro catártico.
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A essa altura, o leitor poderia protestar, puxa vida, como é que um escritor desses e uma obra assim poderiam ter alguma coisa a ver com a natureza imperial da Rússia e como poderiam ajudar a diagnosticar o nosso problema, que não é literário. Primeiro, é preciso ter em mente que a Rússia, enquanto estado-nação, é um país literatura-cêntrico. A formação nacional e da língua russa tiveram em seus expoentes poéticos e literários os artíficies conscientes e centrais na construção do império, tanto quanto economistas, políticos ou generais. Segundo, a força moral e o caráter multifacetado dessa literatura a mantêm de pé, sustentando a inexauribilidade dos mitos e ideias-força no bojo da concepção de Rússia. Terceiro, se em 1991 o Império em sua última variante colapsou e se desmembrou em diversas nacionalidades independentes, a literatura nacional russa sobreviveu-lhe íntegra, e é apenas esperado que, neste tempo de soerguimento daquele Império, essa mesma literatura compareça e seja reentronizada.
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Mas voltemos ao que “Recordações da Casa dos Mortos” nos elucida do problema, que é o tema aqui.
Simplificando, um drama subjacente nesse romance se dá no descompasso do encontro entre a classe média urbana intelectualizada e os ‘narods’, o povão. O empecilho maior consiste na cicatriz insuperável da divisão de classe, que repercute numa distância moral difícil, senão impossível de ser superada. As tentativas diretas de aproximação, mesmo no fogo da revolta, são descartadas como inautênticas e artificiosas. Ainda que dividindo a mesma condição de sofrimento e provações, nesse romance, isto não basta para reconciliar as classes num corpo uno. A síntese não ocorre.
É por isso que o romance coloca em cena presos de várias nacionalidades. Sigo daqui e desenvolvo por conta própria o cerne do argumento de Olga Maiorova, em “Dostoevsky in Context” (ver ainda dela o brilhante “From the Shadow of Empire”). Pois o narrador de “Recordações da Casa dos Mortos” toma seu tempo para descrever as particularidades nacionais de parte dos presos, o que não pode ser acidente. Não aparecem apenas presos neutros, de nacionalidade incerta ou provavelmente russos, dos quais não sabemos a origem na narrativa. Aparecem também presos tártaros, judeus, ciganos, poloneses, calmucos, ucranianos e circassianos, com nacionalidade marcada. A marcação não é somente para colorir a separação mais importante, que seria a de classe. As outras nacionalidades são inseridas no jogo para que se possa vislumbrar uma via possível para a ultrapassagem do fosso.
Em 1831, as tropas do czar Nicolau I suprimiram brutalmente o levante dos poloneses. Poetas e escritores na Rússia, imediatamente, impeliram a campanha contra as aspirações de independência dos vizinhos, formando o front literário antipolonês. Repercussões desse momento formativo, em que o russo se definia em oposição ao independentismo nacional polonês, podem ser encontradas com fartura em alguns poemas narrativos de Pushkin, mas também respingam em escritos de Gogol e Dostoievski. Em “Recordações da Casa dos Mortos”, Goryanchikov conhece presos políticos decorrentes da repressão de 1831, quando contingentes de intelectuais de Varsóvia foram deportados para diversas localidades na Sibéria ou nas estepes. Goryanchikov consegue sem maiores barreiras aproximar-se deles, pois são alfabetizados e cultivados. Mas logo percebe como são aristocráticos, fechando-se sobre si mesmos, como lidam com os mujiques como se estes fossem ignorantes intratáveis. Por tal ar pedante, os poloneses são detestados por todos. Seu destino trágico na história não comove os outros presos.
O caminho redentor para Goryanchikov não pode ser antevisto na relação com os poloneses, de cabeça feita por valores ocidentais (como o catolicismo), mas em presos provenientes das montanhas do Cáucaso. Um deles, Alei, um tártaro do Daguestão, é visto pelo narrador como um inocente, ainda que seja um criminoso condenado: “preservou seu coração terno, sua honestidade nativa, sua cordialidade franca”. Apesar da situação de miséria em que estavam, Alei aceitava estoicamente aquele destino como designado por uma vontade superior. O narrador espanta-se como este muçulmano do norte do Cáucaso tinha um coração de ouro, alguém imaculado diante de um meio horrível e degradante. Parecia-lhe inexplicável, em sua simplicidade, como Alei não se deixou perverter, não se corrompeu mesmo nas condições mais adversas.
A aproximação, a certo ponto do livro, enfim, acontece e se dá em termos muito diferentes daqueles tentados durante boa parte dos capítulos (abordagem direta, conscientização dos problemas, unidade na revolta). Goryanchikov recorre à bíblia para ensinar a Alei o idioma russo. A seguir, ensina-lhe o conteúdo mesmo do livro sagrado, a religião cristã. Alei aprende a língua e a religião, até chegar à conclusão que o cristianismo e o islamismo contêm, em seu âmago, a mesma mensagem de amor e respeito ao próximo, a mesma atenção zelosa do ser humano pelo ser humano. Tanto Alei quanto outro preso do Cáucaso, Nurra, se mostram dotados de uma abertura prospectiva e uma economia emocional generosa que os polacos, já contaminados pelos valores ocidentais, não poderiam dispor.
O caminho para a reconciliação não residia na revolta contra o poder constituído ou numa ideologia convincente. Estava, sim, ao alcançar a pureza de coração, superando a cobertura civilizatória de crimes, vícios e opressões. Essa é a chave, o que poderá permitir ao narrador acessar o “narod”, o povo profundo: pelo exemplo de firmeza moral e pela verdade educativa, em Cristo, mas um Cristo plebeu, que caminha entre os sujos, os danados, os sofredores. Sofrimento, inocência e salvação, três temas conjugados. Mas são as nacionalidades a Oriente da Rússia, quer dizer, aquelas não ocidentalizadas (ou católicas), que poderiam mostrar o caminho para o russo em sua tarefa missionária. Civilizando-as, civiliza a si próprio, um precisa do outro, todos juntos na reunião do mundo fraturado em comunhão suprema.
Portanto, a extensão e a dominação do Império sobre dezenas de povos da Ásia Central que ocorria a plenos pulmões durante o reinado de Nicolau I entram transfiguradas no romance dostoievskiano. Mas entram apaziguadas no teatro da redenção do educador russo, pela via paternal do império benigno. A nacionalidade russa é o neutro, não tem em si nenhum conteúdo em particular, é pura forma da universalidade, que pode compreender as demais culturas e recompô-las no berço cristão de amor e paz. Não é caso apenas de levar a luz da fé e da razão a terras bárbaras e atrasadas. A Rússia precisa das nacionalidades outras para redimir-se. Trata-se de assimilar e compreender a todas num estado universal in nuce. É a questão das nacionalidades em estado nascente.
Como se lê nas entrelinhas de “Recordações da Casa dos Mortos”, Dostoievski engendra a cosmovisão de um império englobante cuja meta é salvar o ser humano. Entrelaçam-se as promessas de harmonia igualitária de Fourier com as místicas do cristianismo primitivo, entre martírio e salvação, entre colonização e elevação anímica. Dostoievski se acerca com deferência e espírito fraternal do ‘narod’, do popular — não para liderá-lo ou submetê-lo, mas para reuni-lo no destino comum da humanidade.
A Rússia é o protótipo de difusão do universal, a sua tarefa histórica não deixa de ser messiânica, no sentido de congregar os demais povos na mesma mensagem essencial, para Dostoievski, de amor e piedade. A concepção da Rússia de Dostoievski passa pela constatação dessa missão expansiva, no propósito de construir a fraternidade de todos os povos. Tudo isso ainda tem poucas determinações, no ponto da cronologia da obra em que nos encontramos (1861), mas as linhas-mestras do maquinário dostoievskiano estão assentadas.
Como, em “Recordações da Casa dos Mortos”, Alei e Nurra gravitam na direção do centro narrativo que é Goryanchikov, ocorre a gravitação dos povos no entorno do império na direção da Rússia e seu núcleo assimilador. Por lei natural. A lenta decantação da conversão de Goryanchikov ao longo dos capítulos, uma catarse em cascata, conclui a parte do livro que se passa na prisão. Assim como, na biografia de Dostoievski, os dramas íntimos da experiência anterior como conspirador ocidentalizado só vão encontrar distensão na fronteira extrema do Império. Ou seja, na fronteira da condição humana na pobreza e no sofrimento, o ponto de religação com a alteridade, no que Dostoievski encontrará um sentido interior.
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PS1: As desventuras de Dostoievski com a cena de grupúsculos em São Petersburgo, como se sabe, serão reelaboradas em “Os demônios”, já no contexto de outro ciclo de vanguardas e sectarismos na Rússia do período de Alexandre II.
PS2: O prisioneiro muçulmano Alei é precursor de outros imaculados da obra, como Alyosha (em “Irmãos Karamazov”) ou Mishkin (em “O Idiota”).
PS3: Outros grandes textos que tematizam o sistema prisional, para ficar no séc. XIX e na Rússia, são “Ilha Sakhalin”, de Tchekhov, “Siberia e Katorga”, de Maksimov. Para o século XX, quando as condições dos gulags pioraram ainda (muito) mais, temos “Contos de Kolimá”, de Shamalov, e “Arquipélago Gulag”, de Soljenítsin.
PS4: Este post se cirscuncreve à fase do Dostoievski socialista-cristão. Num próximo, abordarei o período posterior, que adentra nas décadas de 1870 e 1880, para falarmos, sempre com a obra e dentro da obra, sobre o Dostoievski pan-eslavista.
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EPÍLOGO
Outro participante, este ocasional, do Círculo Petrashevsky, foi Taras Hryhorovych Shevchenko. A tendência é sabermos bem pouco ou nada sobre este contemporâneo de Dostoievski, que além de escritor e poeta, foi pintor e bardo (kobzar). Possivelmente, Taras e Dostoievski se cruzaram em São Petersburgo num dos muitos círculos políticos e literários. Se procurarmos qualquer biblioteca ou livraria, vamos achar prateleiras de Dostoievski, mas dificilmente, ou nunca, algum escrito de Taras Shevchenko.. Seria por diferenças internas da obra? Talvez sim, talvez não. Acho que poucas pessoas podem fazer um juízo comparativo, por não terem lido o segundo.
No meu caso, desde a invasão na Ucrânia e a resistência, corri para sair das narrativas dos “westxplainers”, os que não nutrem nem sequer curiosidade sobre a história dos ucranianos e se encastelam no ramalhete de clichês preguiçosos (sobre a OTAN, a Geopolítica, a Literatura Russa etc). A lacração, acima de tudo, é uma condição séria decorrente da preguiça. O lacrador ou cancelador não leu, não vai ler e tem raiva de quem leu, pois é fácil sinalizar virtude sem saber do que se está falando, sempre de fora das questões reais.
Pois bem, do pouco que pude encontrar e ler, uma biografia curta e poemas/extratos disponíveis online, Taras tem uma trajetória pessoal parecida com Dostoievski em alguns aspectos, muito diferente noutros. Também se envolveu com sociedades conspiratórias contra a autocracia e a servidão, no limiar da primavera dos povos de 1848. Também foi preso e deportado para campos imperiais de trabalho forçado a Leste. E também sofreu consequências físicas e psicológicas desse período de sofrimento, abreviando-lhe a vida. Porém, Taras, ao contrário de Dostoievski, nasceu servo na zona rural ao sul de Kiev, escrevia num idioma proibido e discriminado, e a sua obra desde cedo assumiu o caráter abertamente anti-imperial, na acepção de anti-dominação russa.
Depois de uma fase mais romântica até o começo de 1840, a poesia narrativa de Taras passa a abordar sem rodeios a questão social, satirizando os mais ricos, os proprietários e até a dinastia dos Romanovs. Vale a pena buscar versões traduzidas (encontrei-as em inglês), para ao menos acessar a veia cômica, a torrente de imagens, a eloquência ferina, de poemas como “O sonho” ou “Cáucaso”. Quando foi condenado pelo czar Nicolau I, entre os motivos da sentença incluiu-se “promover dialeto russo-menor” (isto é, a língua ucraniana) e “atentar a um dos três pilares da monarquia” (o terceiro, a Nacionalidade).
É para refletir com vagar sobre a desvantagem histórica tremenda do ucraniano em relação ao russo. Mesmo nas prisões imperiais ou soviéticas, quando presos de nacionalidades subjugadas se encontravam, tendiam a falar entre si o russo, a língua do opressor, assim como os escravos brasileiros tinham que se apropriar do português, se quisessem conjurar.
Não bastasse isso, o espaço de encontro de pensamentos e projetos dos povos russificados e oprimidos era a literatura que todos conheciam e muitos admiravam, ou seja, a literatura russa. Que eram as obras de Tolstoi, Dostoievski, Gogol, Pushkin ou Tchekhov, seus personagens, tramas e estilos. Mas dificilmente seria de Taras Shevchenko ou outros autores das colônias internas ao Império.
Esses tinham um duplo desafio. Inventar uma língua dentro da língua, e desfiar linhas de fuga a partir dos mapas mentais da literatura predominante, para formular os problemas de sua própria perspectiva.