Trecho do artigo Macunaíma: artista da transformação, publicado na Revista Passages de Paris 22/23: Dossier Varia. Artigo completo aqui
Alexandre F. Mendes
Introdução
Na esteira dos recentes debates realizados em razão do centenário da Semana de Arte Moderna (São Paulo, 1922), o objetivo deste ensaio é abordar o mais famoso livro do escritor modernista Mario de Andrade, Macunaíma: o herói sem nenhum caráter (1928), através de três interpretações que se misturam com diferentes visões de Brasil.
A primeira interpretação – que chamo de o Brasil como Programa – se liga ao ideário da formação nacional, pensado em contradição com a cultura europeia, tida como majoritária. Esse ideário poderia ser subdividido, por sua vez, em dois humores opostos: um otimista-apologético (o tipo de nacionalismo que Mario sempre recusou) e outro pessimista-melancólico, que será o objeto de debate neste texto.
A segunda interpretação – que chamo, seguindo Oswald de Andrade, de Brasil como Pindorama (“Lugar das Palmeiras”, em tupi), encontra na linhagem inaugurada pelo escritor antropofágico, uma oportunidade de pensar o Brasil como destituição permanente de elementos majoritários, ou seja, como operação de minoração. Da constelação de autores mobilizados por essa linha, iremos trazer a recente provocação de Leda Tenório da Motta, em livro publicado por ocasião do centenário da Semana (Motta, 2022), além clássica controvérsia instaurada por Gilda de Mello Souza sobre a leitura de Haroldo de Campos. Nessas análises, o Brasil aparece, não como programa contraditório, mas com espaço de reinvenção contínua diante do poder conformador das utopias messiânicas e da melancolia contida na busca de uma identidade perdida.
A terceira interpretação – que chamo de Brasil como nossa gente, segue a intuição de Mario de Andrade (Macunaíma, “herói de nossa gente”[1]), reformulada pelo artista indígena Jaider Esbell. Essa interpretação resgata a origem indígena do herói e busca substituir a ideia de povo nacional pela alusão a uma “gente-nação de identidade desafiadora, beirando o fantástico” (Esbell, 2018, nosso grifo). O Brasil aparece como interrogação, diante da insistência de uma arte da existência da transformação, que desafia as vocações mortíferas contidas no projeto colonial e no projeto de modernização nacional. Makunaima[2] pula de seu campo de significação (de sua “cultura”) para se lançar na capa do livro de Mario de Andrade, entrando para o cânone da literatura nacional. Com esse movimento ambíguo, e sempre objeto de mal-entendidos, Makunaima é capaz de percorrer os quatro cantos do Brasil, e até de adquirir uma forçada consciência hispânica, para lançar uma advertência a todos: os povos amazônicos irão insistir em existir e em se transformar, mesmo diante das epidemias, da fome, da mineração e do envenenamento de suas terras. O Brasil é de “nossa gente”, no sentido de ser um espaço aberto à invenção que resiste à homogeneização e desafia, constantemente, os projetos de conformação identitária.
- Brasil: Programa ou Pindorama?
Após esclarecer os objetivos do texto, proponho iniciar pelo livro mais recente de Leda Tenório da Motta, intitulado Cem anos da Semana de Arte moderna: o gabinete paulista e a conjuração das vanguardas (2022). No livro, Motta decide polemizar contra o que ela denomina de “gabinete paulista”, um conjunto de iniciativas acadêmicas que busca domesticar a linha antropofágica do modernismo brasileiro de 1922. Curiosamente, não só Macunaíma está no meio desta disputa, como a normalização dessa dimensão mais radical teria sido incentivada pelo próprio Mário de Andrade, em seu balanço autocrítico dos vinte anos da Semana intitulado o Discurso do Itamaraty, de 1942 (Motta, 2022, p. 24). Para Mário, o principal legado da Semana de Arte Moderna para o Brasil foi a aquisição de um direito à pesquisa crítica cujo pano de fundo seria a possibilidade de estabilização de uma consciência e de um espírito nacional (Andrade, M. 2002, pp. 273).
Contra esse ideal didático de estabilização, Leda Tenório da Motta afirma que a criatividade dos primeiros anos modernistas só foi possível por não estar enclausurada no purismo ideológico dos anos seguintes. Sem qualquer sentimento de culpa e de sacrifício, o Brasil aparece como um material a ser trabalhado pelo avesso, sendo utilizado como provocação desaforada contra a nossa subordinação ao purismo lusitano e à diluição retórica do bacharelismo colonial e imperial (Motta, 2022, p. 31). O alvo é claro e Oswald de Andrade o explicita, em 1924, no seu Manifesto da Poesia Pau-Brasil: “O lado doutor. Fatalidade do primeiro branco aportado e dominando politicamente as selvas selvagens. O bacharel. Não podemos deixar de ser doutos. Doutores. País de dores anônimas, de doutores anônimos. (…) Eruditamos tudo” (Andrade, O. 2021, p. 619).
Ao fatalismo erudito e bem-pensante, Oswald contrapõe a intensidade dos paradoxos: o Brasil é e não é brasileiro, a vanguarda ilumina um futuro já contido no barroco carnavalizado da Bahia do séc. XVII, a presença do bárbaro sul-americano é vislumbrada de um velho quarto na Place Clichy, em Paris. Não há contradição. É na coexistência de vários sentidos possíveis que as mais diversas dores e alegrias saem do anonimato, rejeitando o esconderijo forjado pelas profundezas do discurso ilustrado. O que resta escancarado é o que nos une e dois protocolos “deontológicos” devem reger essa experiência: multiplicidade e não contradição; devoração crítica e não assimilação subordinada.
Ontologia ou Odontologia? Uma pergunta nada retórica e que está em jogo nas diferentes leituras possíveis de Macunaíma. O campo de interpretação é fértil: Mário descobre o mito através do contato com as narrativas indígenas recolhidas pelo naturalista alemão Theodor Koch-Grünberg[3] e o embaralha a elementos da cultura popular e regional brasileira e da cultura urbana-industrial de São Paulo (esses também deslocados de suas centralidades). Ao notar que Macunaíma, em sua ambiguidade, não tem caráter – pois ele é, ao mesmo tempo, herói e anti-herói: o trickster por excelência – Mário o coloca em uma dupla posição:
(a) Programa. De um lado, o escritor utiliza o mito para indicar que o Brasil seria indeciso como Macunaíma. Isto é, ao contrário das nações civilizadas, o país possuiria somente alguns traços identificáveis, sem formar um caráter definido. Ele seria um símbolo da nossa ausência de nacionalidade e de uma narrativa estável sobre a cultura brasileira;
(b) Pindorama. De outro, Mario insere Macunaíma em uma proliferação de transmutações que impedem o processo de formação nacional e de constituição de uma narrativa homogênea. Macunaíma se apresenta aqui como multiplicidade antropofágica: o encontro, permeado pela devoração, entre animais extravagantes, agentes cósmicos, pássaros de todas as espécies, mulheres guerreiras, religiões afro-brasileiras, cancioneiros nordestinos, sotaques sulistas, migrantes italianos, alemães, trabalhadores da cidade etc. Macunaíma interessa, nessa segunda linha, pelo contrário: por sua capacidade notável de supressão dos elementos de poder que estabilizam as maiorias no Brasil, impossibilitando a fixação de uma constante ou de um padrão majoritário[4].
A primeira linha de interpretação tenta, continuamente, amortecer o impacto das leituras antropofágicas realizadas desde a celebração de Macunaíma, por Oswald de Andrade. Não seria equivocado dizer que a Antropofagia não só foi domesticada, como o foi desde o início. Uma domesticação que pode ser tida como o resultado “natural” de uma concepção de Brasil que, paradoxalmente, permanece presa à cultura europeia como padrão majoritário. A devoração antropofágica, ou seja, a supressão dos elementos majoritários contidos no programa colonizador ou estatal-nacionalista, é substituída por uma tristeza presa à contradição e à indecisão.
2. Macunaíma: símbolo do Brasil ou aventura da linguagem?
Para oferecer um exemplo dessa abordagem dicotômica, gostaria de relembrar a leitura de Macunaíma realizada pela ex-professora da Universidade de São Paulo, Gilda de Mello Souza. O alvo da autora, em seu ensaio incontornável, é o poeta concretista Haroldo de Campos e sua tese de doutorado intitulada A morfologia de Macunaíma (1973/2008). Como se sabe, Campos, em resposta aos primeiros críticos da obra, afirma que Macunaíma longe de ser uma obra caótica ou malograda é meticulosamente estruturada de acordo com princípios da lógica fabular[5]. Ao revelar uma “sagaz” imaginação estrutural, a obra supera o procedimento onírico e subjetivista do Mário de 22 e produz um herói descaracterizado, sem lógica psicológica própria, sem intimidade, importando mais pelo que faz (os signos da ação) do que pela atmosfera construída por sensações.
Além disso, ao se basear, em larga medida, no lendário indígena recolhido por Koch-Grünberg, Mário teria realizado a sua obra mais antropofágica e radical, reintroduzindo na escritura romanesca um modo de articulação relegado à periferia da literatura, ou seja, usando o suposto “primitivismo” da fabulação oral para empreender uma renovação das possibilidades literárias. Essa “rebarbarização do literário” (Campos, 2008, p. 63) permite que uma nova lógica seja introduzida, justamente aquela do pensamento fabular que, para Campos, antecipa o que Lévi-Strauss chamará de lógica concreta do pensamento selvagem (Lévi-Strauss, 1989). Ao imergir e brincar com as regras anônimas e estruturais de criação, Mário adentra em um código de virtualidades inerente à criação coletiva coproduzindo, paradoxalmente, a sua obra mais singular e contra-autoral. Daí a afirmação provocativa de Campos: Macunaíma foi escrito “por Mário contra si mesmo, contra o seu psicologismo e a sua indulgência retórico-sentimental” (Campos, 2008, p. 08).
Em O tupi e o alaúde (1979/2003), Gilda de Mello Souza, por sua vez, tenta resgatar o aspecto simbólico-intencional do livro, afirmando que Mário teve que admitir que “semeara o texto com intenções, referências figuradas, símbolos e que tudo isso definia os elementos de uma psicologia própria, de uma cultura nacional (…)” (Souza, 2003, p. 09). Pelo mesmo motivo, Souza recusa a abordagem estrutural-fabular de Campos, para encontrar no processo criador na música popular o modelo de composição de Macunaíma. O livro é, assim, reinserido no projeto do escritor modernista, sendo biograficamente simultâneo à busca, por ele, de uma solução brasileira para a música, de referências para o estudo do folclore e de um conhecimento vivo da criação popular em suas “viagens etnográficas”[6] (idem, p. 13).
Através da transposição de duas formas básicas da música ocidental – suíte e variação – Mário encontra um processo criativo semelhante ao modelo rapsódico do bumba-meu-boi e dos improvisos presentes no canto nordestino (idem, pp.13-21). A escolha dessa específica dança dramática popular (e a figura do boi) teria uma “intenção ideológica” em sua função metafórica de produzir um sentido de nacionalidade e de possibilitar algo em comum entre os indivíduos (idem). Através de Macunaíma, o escritor tenta articular um desejo profundo inscrito em seu projeto: estabelecer uma identidade entre os habitantes ricos das metrópoles do sul e os sertanejos, seringueiros e camponeses do norte (idem, p.17). Através do método dos cantadores nordestinos, por sua vez, Mário consegue extrair algo novo e original. No plano da composição, utiliza um material já elaborado e de múltiplas fontes; no plano da criação, mobiliza as variações entre consciente e inconsciente, entre memória e esquecimento, presentes no improviso do populário musical (idem, p. 28).
No entanto, para Souza, uma contradição insolúvel e uma indeterminação constante estão presentes, tanto em Macunaíma, como no próprio folclore brasileiro, a saber: o conflito entre a velha herança europeia e as fontes locais, populares, indígenas e africanas de inspiração. No livro, o herói vence Piaimã, afirmando os valores de Uraricoera diante de Venceslau Pietro Petra, rico fazendeiro italiano, regatão peruano e gigante comedor de gente. Mas encontra a derrota diante da Vei, a Sol, ao preterir uma de suas filhas em favor de uma mulher portuguesa. A cisão entre a realidade nacional (cultura popular) e a herança europeia (a adoção, no final das contas, de uma narrativa tradicional arturiana – a busca de um objeto perdido) reflete uma fissura inerente ao projeto de Mário de Andrade. Entre o tupi e a alaúde, Mário vive uma tensão permanente que nunca será resolvida e que inviabiliza o otimismo afirmativo das leituras antropofágicas (idem, p. 84).
Além disso, esta falta constitutiva nos conduz, na crítica de Haroldo de Campos e Leda Tenório da Motta, a uma visão sociológica que busca na literatura um mero instrumento de autoconsciência nacional. Não à toa, Gilda de Mello Souza compartilha a visão de Antônio Cândido de que a formação da literatura nacional esteve ligada ao processo de autoconhecimento de nossa contradição constitutiva. Por sua vez, Campos e Motta, dialogam pioneiramente com Jacques Derrida, para mostrar que essa visão promove uma redução da intertextualidade literária em razão da presença substantiva de um extratexto baseado na falta. A ideia de formar uma literatura majoritária (com “caráter”), através da estabilização da crítica nacional, acaba prisioneira de um enquadramento sociológico prévio. Estamos diante de uma “metafísica da presença” que, na periferia, se impõe pela contradição. Uma jornada malograda do logos em busca de seu espírito (de seu “caráter”) que nos levaria ao desfecho de Macunaíma: não encontrar um lugar neste mundo e subir ao céu como uma estrela apontada para o Norte.
A crítica literária, segundo Motta, se torna, como em Roberto Schwarz, uma “crítica exigente”, séria e engajada politicamente. Algo bem distinto das despreocupadas blagues antropofágicas, condenadas por Schwarz por apresentar um viés mercadológico e burguês (Da Mota, 2021, p. 71). Sua imponente missão ontológica seria realizar a sondagem do mundo contemporâneo através da literatura e escutar o logos desde a periferia. O risco evidente dessa leitura é o retorno, agora pelas vias do academicismo sisudo, à erudição pretensiosa dos bacharéis. O comentário do próprio Mario de Andrade – de que Macunaíma foi escrito como uma brincadeira de férias – é esquecido em favor da seriedade programática. A normatividade dos grandes projetos se torna necessária. É preciso assumir uma atitude crítica e engajada, mesmo que prolonguemos, no final das contas, o drama moral do nosso academicismo inofensivo: a oscilação entre o impulso retórico grandiloquente e a paralisia da autoindulgência e da autovitimização.
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[1] O uso do termo “gente” na rapsódia de Mário e a sua relação com os mitos etiológicos e o perspectivismo ameríndio foi analisada por Alexandre Nadari: “Isso para não falar do caráter dêitico da humanidade na rapsódia, visível na predileção de Mário pelo uso, em detrimento de “humano” ou “homem”, de “gente”, para marcar a condição originária de sujeito DE (potencialmente) todos os habitantes do cosmos: isso – Timbó, Carrapato, ferida do nariz de formiga – “já foi gente que nem nós” é uma espécie de fórmula que, com variantes, atravessa a obra. E é porque tudo já foi gente, ou está deixando de ser gente (Macunaíma é composto de uma série de mitos etiológicos), incluindo aí o próprio herói, que a humanidade (a posição de sujeito) não é substantiva, mas perspectiva, variável, pronominal: antropronominalismo, é gente quem diz (ou se inclui quando se diz) a gente” (NODARI, A. 2020, p. 43).
[2] Neste artigo, utilizaremos “Macunaíma” para referirmo-nos à rapsódia de Mário de Andrade e “Makunaima” para referirmo-nos às leituras que valorizam ou que são produzidas pelos próprios indígenas.
[3] Cf. KOCH-GRÜNBERG, T. Vom Roroima zum Orinoco: Ergebnisse einer Reise in Nordbrasilien und Venezuela in den Jahren 1911-1913 – Mythen und Legenden der Taulipang und Arekuna Indianer. Stuttgart: Verlag Strecker und Schröder, 1924. Uma edição do livro em português (em três volumes), com ilustrações de Jaider Esbell e tradução de Cristina Alberts-Franco, está em pré-lançamento pela editora UNESP.
[4] Penso esta atividade de minoração permanente em Macunaíma através das reflexões do filósofo Gilles Deleuze sobre o teatro de Carmelo Bene. No teatro de Bene, a operação de “minoração” avança, não por oposição, mas através de uma constante mutilação dos elementos majoritários, como o Estado, o Rei, o Texto e o poder de representação do próprio “Teatro”. Para Deleuze, ao suprimir os elementos de poder, este teatro é capaz de colocar em variação forças não representativas, intensificando gestos, cores, luzes, sutilezas vocais, deformações cênicas, desequilíbrios, alianças e, no limite, potencializando modos de vida que resistem à ideia majoritária de Povo ou de História (DELEUZE, 2010).
[5] Para fundamentar esta afirmação, Haroldo de Campos aproxima o trabalho de Mário de Andrade da pesquisa sobre as estruturas do folclore realizada pelo formalista russo Vladimir Propp. (Cf. EIKHENBAUM, Boris et al. 1973).
[6] Sobre as viagens de Mario de Andrade à Amazônia e ao Nordeste, conferir a bela edição estabelecida por Telê Porto Ancona Lopez e Tatiana Longo Figueiredo: ANDRADE, Mário de. O Turista Aprendiz. Brasília, DF: Iphan, 2015.