“ A palavra não foi feita para enfeitar, brilhar como ouro falso, a palavra foi feita para dizer.”
Graciliano Ramos
“[…] Vou escrevendo meus versos sem querer, como se escrever não fosse uma cousa feita de gestos, como se escrever fosse uma coisa que me acontecesse, como dar-me o sol de fora. Procuro dizer o que sinto sem pensar em que sinto. Procuro encostar as palavras à ideia e não precisar dum corredor do pensamento para as palavras. Nem sempre consigo sentir o que sei que devo sentir. […] Procuro despir-me do que aprendi, procuro esquecer-me do modo de lembrar que me ensinaram, e raspar a tinta com que me pintaram os sentidos, desencaixotar as minhas emoções verdadeiras. Desembrulhar-me e ser eu, não Alberto Caeiro, mas um animal humano que a Natureza produziu […]”
Poesia Completa de Alberto Caeiro, Fernando Pessoa
Quero fazer uma confissão rápida em alto e bom som: não escrevo bem. Não paradoxalmente escrevo que não sei escrever bem como quem deseja ardentemente elogios e exaltações intelectuais (tão exacerbados e banalizados em nossa vaidosa Comunidade Jurídica): veja bem, não se trata de pedantismo intelectual, mas sim de uma busca desesperada por um sopro de alívio. Uma eu de quatro anos de idade escreveu em um caderno hoje manchado pelo tempo: “Quando crescer, vou ser advogada! Siga as seguintes pistas: amo escrever!” Como meu amor foi maculado por desconforto e asco? Meu relacionamento com a escrita passou dos excitantes namoricos para o cansaço após as Bodas de Ouro conjugais. O momento exige calma.
O mal-estar entre a escrita (seja ela em Word ou no papel) e o Direito pode certamente ser abordado a partir de um ângulo sociológico das relações sociais no Brasil, da cultura do Bacharelismo e pela pretensa erudição de seus operadores, verdadeiros malabaristas de palavras. Porém, todas essas análises já foram feitas por autores mais gabaritados e estudiosos que eu (Raymundo Faoro, Darcy Ribeiro, etc.). Não faço uma crítica somente ao famoso “juridiquês” e seus arroubos cotidianos, mas ao não contato entre a palavra e o estudante de Direito. Sei que meu argumento pode soar um pouco absurdo e descolado da realidade, principalmente para meus colegas que reiteradamente afirmam já estarem “exaustos de tanto ler doutrina e decisões do STF”. É certo que lemos muito, muito mal. Sermos ávidos leitores (o que já não somos) não nos torna imediatamente ou necessariamente bons escritores, já enunciava Proust em seu primeiro livro da extensa obra “À la recherche du temps perdu”.
A leitura de Manuais de um determinado ramo do Direito é diversas vezes recomendada com advertências por parte dos professores: “Ler é essencial, tem que ler para saber escrever bem! Escrever é mais importante que ser um excelente orador!”. Como esperar que estudantes, amanhã operadores do Direito, escrevam razoavelmente se o único momento em que escrevem é durante a pressa cronometrada das provas? Se só leem os enxutos manuais recomendados no estressante trânsito enquanto enclausurados no ônibus? Um mundo acelerado, cansado e apressado produz leituras aceleradas, cansadas e apressadas de leitores acelerados, cansados e apressados. Acabamos por não conhecer a palavra, nosso ganha pão, e o desastre decorrente disso se vê todos os dias em petições iniciais, sentenças, artigos e trabalhos acadêmicos.
A repetição das estruturas “Ler é”, “Escrever é” e “Ler e escrever fazem” acaba frequentemente reduzindo e generalizando o que genuinamente significa ser um leitor ou escritor. Embora não possa definir o que os dois vocábulos significam com uma precisão cirúrgica, sei que são mais do que captar um código de linguagem transmitido pelo autor do texto (ou o eu lírico): é uma forma de estar no mundo e de se comunicar com ele. Essa reiterada generalização da leitura e da escrita como atividades prazerosas, de “purificação espiritual” (catarse para os gregos) esconde dentro de si um paradigma desagradável: se precisamos ser convencidos constantemente (perceba aqui a diferença entre convencer e estimular) a nos tornarmos leitores ou escritores, talvez essas duas atividades tenham deixado de ser tão prazerosas e estimulantes assim. As fórmulas “Faça X se quiser ter Y” ou “Faça Y porque faz bem” se encaixam perfeitamente nos nossos exemplos de sala de aula e são, evidentemente, usadas para convencer o interlocutor a realizar uma atividade considerada desagradável em troca de uma recompensa futura.
A leitura e a escrita passam a ser extremamente desconfortáveis não somente pela concorrência com os novos meios de estímulo audiovisual e pela escassez de tempo (ninguém precisa convencer um estudante, seja ele de Direito ou não, a assistir mais um capítulo ou até mais uma temporada de uma série no Netflix), mas sim porque isso nos reconecta a nossa baixeza enquanto seres humanos, a nossa miséria Machadiana, aos dejetos mais sórdidos do nosso eu. Em um mundo extremamente egocêntrico e individualista, reconheço que a nossa incapacidade (isso mesmo, a minha e a sua) de “esquecermos de lembrar do modo que nos ensinaram, de rasparmos a tinta com que nos pintaram os sentidos” não é um fenômeno exclusivo do meio jurídico, escrever é um exercício de alteridade, é sair de si. As nossas experiências primevas com uma escrita mais “livre” ou “solta” são progressivamente substituídas pelo crivo rigorosíssimo das correções e dos ditados. A licença poética se torna uma “vênia” processual com início, meio, fim e um culpado. Finalmente devidamente castrados (Freud que o diga) os nossos pronomes pessoais e de tratamento, damos ares de “neutralidade” aos nossos pareceres. Pois bem, me parece (nada de “parece-me”) que o corte de nossas “asas” linguísticas e os constantes lembretes de nossas irrelevância e mediocridade literárias possam ser uns dos motivos para o nosso “defeito” jurídico conjunto, sujeito à cláusula de nulidade de nós mesmos.
A resposta para nossos problemas não está em um saudosismo de produções intelectuais instigantes e profundas. O fato é que não vai existir um outro Proust para escrever um Romance de mais de 1000 páginas porque não há mais tempo nem para lê-lo nem para escrevê-lo; outros Mozarts nem pensar porque “música não dá futuro” e muito menos “pupilos” e “mestres” versados em Latim, grego antigo e aramaico (dignos de Guilherme e Adso de “O nome da Rosa”), porque essas línguas estão “todas mortas” e o “negócio hoje em dia é falar inglês”. A resposta para os nossos problemas é mais profunda e árdua que todas as outras: escrever como as lavadeiras de Alagoas e como um animal humano que a Natureza produziu. Se este esboço de texto te deu respostas simplórias que poderia ter encontrado nos livros de Graciliano Ramos e Fernando Pessoa, não faço mea culpa de jeito nenhum, não digo “so sorry”: eu te avisei que não escrevo bem.
Texto de: Debora Gama