“A ficção científica costuma ser descrita, até mesmo definida, como extrapolação. Espera-se que o escritor de ficção científica tome uma tendência ou fenômeno do presente, purifique-o e intensifique-o para efeito dramático e estenda-o ao futuro.”[1]
É assim que Ursula K. Le Guin começa a introdução do livro A mão Esquerda da Escuridão, um clássico da ficção científica, que, em linhas gerais, se propõe a pensar o contato político entre humanos e uma sociedade não organizada de acordo com o gênero. Nos termos da citação inicial, a ficção científica se faria de previsões e Ursula aponta que se poderia comparar os resultados do fazer da ficção científica com testes de laboratório em que ratos recebem grandes doses de determinados suplementos a fim de prever o que poderia acontecer às pessoas que consumissem a mesma substância. O resultado, ela aponta, parece ser quase sempre o mesmo: câncer. Esse também seria o resultado da extrapolação na ficção científica e, mais acentuadamente, nas distopias: a criação de mundos adoecidos e autodestrutivos. O desfecho dessas obras tange com frequência a extinção gradual da liberdade humana e da vida na Terra. Justamente por esse destino, quase sempre desastroso, muitas pessoas resistiriam ao gênero, taxando-o como “muito deprimente”. Ora, não seria esse justamente um ponto de contato óbvio entre a ficção científica distópica e o mundo “real”? Contudo, para Ursula, a extrapolação não seria ainda a marca unificadora da ficção científica. Seria possível, portanto, explorar dentro desse gênero literário as clássicas complexidades morais de um romance ou tão somente realizar um experimento mental, testando os limites da experiência, sem pretensões necessariamente apocalípticas. Explorando a vertente do experimento mental, Ursula também destacava não ser essencial ao gênero a realização de uma previsão do futuro. Para ela, na verdade, o que se faz é imitar a realidade, o mundo atual – “A ficção científica não prevê; descreve.” De forma contraditória, Ursula faz ainda outro interessante apontamento, no sentido de que, aos autores da ficção científica também caberia a construção de uma grande mentira. E, caso o leitor precise de fôlego ou mesmo de recuperar sua sanidade, bastaria fechar o livro. É justamente sobre essas passagens entre a literatura descritiva mentirosa e a insanidade distópica do cotidiano que se pretende debater aqui. E se, ao fechar o livro, o cotidiano nada mentiroso continua a nos perseguir como uma literatura cada vez mais realista? E se, ao invés de uma representação futurística da organização social, passarmos a uma leitura atual do arcaico? Em tempos de flertes fascistas, somos cotidianamente bombardeados com conexões distópicas fornecidas pelo clássico 1984 de George Orwell. Já ficaram até previsíveis os trocadilhos entre 1984 e 1964, uma opaca tentativa de reagir de forma menos dolorida ao absurdo. Na obra citada, O Partido governa tudo, especialmente os canais de comunicação. É nesse contexto que acompanhamos a vida de Winston Smith e seu trabalho junto ao Ministério da Verdade. A manipulação e submissão da população são aqui exploradas pelo viés da linguagem, disseminação e adulteração da informação e, consequentemente, da História. Atualmente, o debate sobre fake news, a possibilidade de existência do “gabinete do ódio”, e ainda a manipulação de trend topics por meio de automatização de computadores tornam muito difícil não pensar no caráter descritivo da ficção orwelliana frente às mentiras politicamente construídas no cotidiano – “Quem controla o passado, controla o futuro; quem controla o presente, controla o passado”.[2] Na mesma linha, outra distopia dispara um alerta em nossas mentes – “Encha as pessoas com dados incombustíveis, entupa-as tanto com “fatos” que elas se sintam empanzinadas, mas absolutamente “brilhantes” quanto a informações. Assim, elas imaginarão que estão pensando, terão uma sensação de movimento sem sair do lugar.”[3] O trecho citado salta do livro Fahrenheit 451 para a realidade. Escrito em 1947, por Ray Bradbury, somos apresentados a um universo em que os livros configuram uma ameaça clara ao sistema, revelando uma sociedade que vive em constante alienação intelectual e tem no corpo de bombeiros a milícia que literalmente incendeia a informação. Voltando para a atualidade e considerando o tratamento oficial aos livros, Fahrenheit nos brinda com outra conexão de obviedade perturbadora. A recente perspectiva de uma reforma tributária que pretende encarecer o mais novo artigo de luxo, o livro, nos lembra logo que “Existe mais de uma maneira de queimar um livro. E o mundo está cheio de pessoas carregando fósforos acesos.” [4] O enquadramento da fala do atual Ministro da Economia de que livros são “coisa de elite” e que o próprio governo daria livros para os pobres é um lembrete preocupante dos fictícios e reais projetos ideológicos que pretendem atingir e limitar a cultura e a educação. E ainda, como não pensar em outra previsão certeira de Bradbury acerca da perseguição e desvalorização das ciências humanas frente à promoção do empreendedorismo do indivíduo? “A escolaridade é abreviada, a disciplina relaxada, as filosofias, as histórias e as línguas são abolidas, gramática e ortografia pouco a pouco negligenciadas, e, por fim, quase totalmente ignoradas. A vida é imediata, o emprego é que conta, o prazer está por toda parte depois do trabalho.”[5] Falar em cientificismo positivista, emprego, e prazer nos remete imediatamente à organização social imaginada por Aldous Huxley, em Admirável Mundo Novo. Na trama, em uma franca crítica ao modelo de produção fordista aplicado à biologia e às relações humanas, a reprodução é inteiramente artificial e geneticamente modificada e o sexo compulsoriamente voltado apenas para o gozo físico. Os seres humanos são gestados em laboratório e produzidos em série, de modo padronizado, com a finalidade de atender demandas produtivas. “Noventa e seis gêmeos idênticos fazendo funcionar noventa e seis máquinas idênticas!”.[6] Mas apenas replicá-los a fim de criar sujeitos produtivos geneticamente idênticos não é suficiente. Em determinado ponto desse processo, os embriões passam por um condicionamento na Sala de Predestinação Social, criando-se, portanto, um sistema de castas, cujo objetivo final é a estabilidade social. Tratamos aqui de uma sociedade que atribui papéis rigidamente definidos, de acordo com a casta atribuída desde o nascimento. As pessoas são colocadas em seus devidos lugares, sejam eles sociais ou econômicos. Essa análise nos faz confrontar imediatamente a fala recente do Ministro da Economia de que a alta do dólar era uma circunstância positiva, pois, de acordo com ele, com um câmbio baixo, todo mundo estava indo para a Disneylândia, “empregada doméstica indo para a Disneylândia, uma festa danada”. Ainda que essa informação seja fantasiosa, já que viagens ao exterior são realidade distante da imensa maioria dos brasileiros, e ainda mais de empregadas domésticas, o discurso revela como o atual governo compreende a hierarquia socioeconômica. Em sua visão, o fato de uma empregada doméstica possuir condições financeiras de visitar a Disneylândia, de ocupar aquele espaço, é uma subversão de regras de convívio social. Tanto assim que o Ministro vai além e aponta os lugares em que, para ele, é concebível encontrar uma empregada doméstica: “Pera aí. Vai passear em Foz do Iguaçu, vai passear ali no Nordeste, está cheio de praia bonita. Vai para Cachoeira do Itapemirim, vai conhecer onde o Roberto Carlos nasceu, vai passear o Brasil, vai conhecer o Brasil”. Sob outro aspecto, em Admirável Mundo Novo, são atribuídas cores de vestimenta às crianças de cada casta. Os Deltas se vestem de cáqui e os Ípsilons se vestem de preto, por exemplo. E tudo isso é ensinado no Curso Elementar de Consciência de Classe! Nesse momento, rememorar a fala da Ministra da Família, Mulher e Direitos Humanos é inevitável: “Menino veste azul e menina veste rosa”. E, por óbvio, que nesse contexto, os conceitos de Menino e Menina e os papéis de gênero derivam exclusivamente da biologia, do órgão sexual atribuídos a cada indivíduo no nascimento, de modo que a transexualidade, a homossexualidade ou a bissexualidade sejam abominadas e taxadas de desviantes. Tal como na obra, as pessoas são encorajadas a assumirem com orgulho as posições que ocupam e nelas permanecerem, sem questionar, sem sequer se sentirem insatisfeitas. “Tal é a finalidade de todo o condicionamento: fazer as pessoas amarem o destino social de que não podem escapar.”[7] Como dito, a estabilidade social no mundo de Huxley vem primordialmente do condicionamento do indivíduo, mas é possível expandir essa visão e pensar no condicionamento coletivo apresentado na trilogia Jogos Vorazes e no prelúdio A Cantiga dos Pássaros e das Serpentes. Nesses livros, Suzanne Collins nos apresenta à Panem, uma nação situada na América do Norte, dividida em Distritos e uma Capital. Cada um dos distritos possui sua “vocação produtiva” e tem como função abastecer a Capital, independente das próprias necessidades locais.
Essa organização político-social de submissão coletiva originou-se após a derrota dos distritos em uma guerra civil travada com a Capital. Como forma de punir os distritos por sua rebelião (justificativa oficial), a Capital instituiu os Jogos Vorazes, competição em que tributos, jovens sorteados em cada um dos distritos, competem em uma arena até a morte. A correlação mais corriqueira com a atualidade diz respeito à espetacularização da violência, uma vez que os jogos são filmados e transmitidos para toda a Panem. No entanto, cabe aqui chamar atenção para um aspecto essencial dos Jogos e sua verdadeira razão de existir: criar um eterno estado de beligerância, um eterno e sempre atual confronto, manter viva no imaginário popular a existência de um inimigo, em uma espécie de Justiça de Transição às avessas. “Não são só para punir os distritos, são parte da guerra eterna. Cada edição uma batalha própria. Uma que podemos segurar na palma da mão em vez de travar uma guerra real que poderia sair do nosso controle". Não parece ser justamente essa a estratégia adotada pelo presente governo que, desde 2018, renova diariamente o clima tenso e de confronto estabelecido nas eleições? São dezenas de declarações e atos voltados à deflagração de crises pré-fabricadas e a alimentar o medo da ameaça de inimigos também artificiais. Tudo isso com o objetivo de manter eleitores e apoiadores engajados em uma eterna disputa sem propósito. Como viver sob a égide de um dia a dia distópico? Como conviver com o absurdo sem naturalizá-lo? A atitude que frequentemente tomamos pode ser espelhada por outra obra de ficção científica. Kurt Vonnegut escreve o seu clássico Matadouro-cinco em 1969, em plena guerra do Vietnã e após sua experiência pessoal na Segunda Guerra Mundial. Vonnegut narra a história de Billy Pilgrim que, aos vinte anos, é enviado para Alemanha em guerra e, sendo um jovem pacato e apático, sua vontade de sobreviver ao terror é quase nula, ainda que de alguma forma resista ao derradeiro bombardeio de Dresden. A narrativa é intrincada e complexa, com viagens no tempo e saltos temporais, o que reproduz no leitor a sensação de confusão e desconforto que Billy sente. Justamente esse sentimento é a maior conexão que o livro poderia fornecer como descrição da realidade. Em um contexto de distrações constantes e perturbadoras, em que não somos poupados de nada, nem sequer de estarmos extremamente informados sobre, buscamos uma fórmula para seguir com nossas vidas e, tal como Billy, repetimos para nós mesmos: “É assim mesmo”. De qual outra forma poderíamos absorver e superar tão rápido as mais de 100.000 mortes durante a pandemia de coronavírus? “É assim mesmo”. José Saramago fala, em sua obra Ensaio Sobre a Cegueira, de uma outra pandemia. Uma distopia alegórica, em que o autor lida com as implicações de um mundo em que todos foram acometidos por uma doença inexplicável, a “cegueira branca”, e conclui: “a cegueira também é isto, viver num mundo onde tenha se acabado a esperança”.[8] Contudo, por mais que a rotina distópica nos leve ao torpor, ainda surgem eventos capazes de nos incomodar tão profundamente que parecem liberar uma indignação que já não se vislumbrava. Um desses casos ocorreu no último dia 7 de agosto de 2020, quando uma perturbadora notícia começou a circular nas redes e mobilizou discursos opostos. Tratava-se de uma criança de 10 anos que havia sido vítima de violência sexual por um homem de sua própria família e, que ao ser levada pela avó para o hospital por se queixar de dores abdominais, descobriu que estava grávida. A notícia em si é extremamente revoltante, além da violência sexual, que foi praticada contra uma criança, por um membro de sua própria família, a criança-vítima encontrou diversas barreiras para exercer seu direito ao aborto legal mesmo após autorização judicial para tanto, precisando se deslocar para outro estado da federação para fazê-lo, onde ainda foi hostilizada, teve sua identidade revelada e sua localização divulgada, ameaçada e transformada em uma mulher-assassina diante de toda a mídia. Em que pese o Código Penal Brasileiro assegurar o direito aborto em caso de gravidez resultante de estupro (art. 128, II), independentemente do tempo gestacional, a distopia do cotidiano se manifestou por meio do constrangimento e da ameaça física, psicológica e até espiritual, para exercer o controle sobre o corpo feminino como instrumento de reprodução. A divulgação da identidade da criança e sua localização partiu de um canal de vídeos de titularidade de uma atual (assim chamada) extremista, ex-assessora da atual Ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos. Foi somente sob brados de assassina e escondida dentro da mala de um carro, que a criança conseguiu romper a barreira de cerca de 200 pessoas, em um hospital a cerca de 1.650 km de onde residia, ser atendida por um médico que havia sido excomungado, e finalmente dispor do seu direito ao próprio corpo. Como não associar o caso às obras de Margaret Atwood que, com provocante descrição, afirma ao tratar das mulheres que “Somos úteros de duas pernas, isso é tudo: receptáculos sagrados, cálices ambulantes.”[9]? Em O Conto da Aia e Testamentos, somos apresentados à Gilead, uma sociedade fundamentalista que sucede aos Estados Unidos da América após um golpe de Estado e, basicamente, substitui a leitura de direitos fundamentais constitucionais por interpretações totalitárias dos mandamentos bíblicos. Nessa sociedade as mulheres têm papéis bem definidos para assegurar sua contribuição ao Senhor. Diante das dificuldades reprodutivas que a população enfrenta nesse futuro, as mulheres capazes de engravidar são transformadas em Aias, predestinadas a sucessivamente gerar filhos para comandantes do regime. Aqui está acima de tudo o papel reprodutor sagrado da mulher, bem como acima de todos os seus direitos fundamentais, sem qualquer ponderação, a expectativa de direito do feto. Claro que antes de saltarmos para conexões distópicas tão severas ponderamos o absurdo do nosso cotidiano, mas não era isso justamente o que os cidadãos de Gilead faziam antes do colapso total da democracia? “Apesar de tudo que já sei, digo a mim mesma: eles não irriam assim tão longe.” [10] A própria resistência a essas conexões já seria comparável ao início das narrativas distópicas em que cremos ter atingido um patamar democrático impassível de retrocessos. Essa atitude de negação diante das conexões assemelha-se à resistência que as pessoas têm à ficção científica distópica, por ser deprimente, tal como narrado por Ursula. Entretanto, por mais forte que seja o nosso desejo, não há como fechar o livro da realidade a fim de nos separar do cotidiano que nos assola. Esse cotidiano é verdadeiramente parte do que somos e das leituras que fazemos, em constituição recíproca. Escrevemos esse ensaio justamente em uma tentativa de ponderar as conexões entre a literatura distópica e a realidade presente. As obras citadas conjugadas com as notícias nos vêm em ondas diárias que servem bem ao propósito de desestabilizar o leitor. Não sabemos como superar a posição conformada e estática de Pilgrim diante do irreal em que sua vida foi transformada, levando-o a entender como normal o fantástico e o cruel. Contudo, acreditamos que o reconhecimento desse espaço de confusão e imobilidade constitui um degrau essencial para qualquer possibilidade de agência sobre essa realidade ao mesmo tempo nada e tão ficcional. Reconhecer, habitar e se apropriar desse espaço parecer ter a potência esperada para a criação de caminhos que permitem explorar outras possibilidades, ramificando esse futuro distópico em linhas alternativas. “Vivíamos nas lacunas entre as matérias.”[11] [1] Ursula K Le Guin. Introdução - A mão esquerda da escuridão. [2] George Orwell - 1984. [3] Ray Bradbury – Fahrenheit 451. [4] Idem. [5] Idem. [6] Aldous Huxley – Admirável Mundo Novo. [7] Idem. [8] José Saramago – Ensaio sobre a cegueira. [9] Margaret Atwood – O Conto da Aia. [10] Idem. [11] Idem.