Texto originalmente publicado em: https://medium.com/@guilhermealfradiqueklausner/projeto-de-proposta-de-comunica%C3%A7%C3%A3o-no-semin%C3%A1rio-desobedi%C3%AAncias-e-democracias-radicais-a-pot%C3%AAncia-54e156672012. Trata-se de uma exposição da Seção 2 do texto “O Comum no Capitalismo Maquínico” feita no âmbito Seminário “Desobediências e Democracias Radicais: a potência comum dos direitos que vêm”.
Então, minha fala hoje, até mesmo em razão do tempo, vai ser uma apresentação de um tema que eu comecei a tratar na minha monografia da pós-graduação de uma forma bem superficial, porque ele se inscrevia no limiar do meu objeto. Ao mesmo tempo que eu descobri que ele era fundamental para a compreensão plena desse meu objeto, que era a formação do Estado Moderno, eu descobri que também falta ser desenvolvida uma metodologia para abordá-lo. O tema é a ordem.
O conceito de ordem é um ponto problemático para se começar qualquer explicação e eu não vou busca-lo. Ordem, na definição que eu vou adotar aqui, é a interação sistemática de normas sociais no sentido durkheiminiano, ou seja, um sistema de comportamentos dotados de sentido dentro de uma determinada comunidade (que aqui não se refere especificamente ao conceito de comunidade sobre o qual se debruça todo esse seminário). De onde eu tirei essa definição? Da definição de fato social do Durkheim, contida no As Regras do Método Sociológico.
Essa ordenação, como já se pode imaginar, tem uma relação tensa com a ordem jurídica e com qualquer outra ordem que tem por intenção organizar a realidade, mas também é normativa. Há uma relação que é pretensioso chamar dialética, mas que, em certa medida, o é. Por que?
Porque a ordem jurídica e qualquer outra ordem que tem por intenção organizar a realidade (e por realidade eu quero dizer os elementos da realidade — a religiosa, por exemplo, tem esse mesmo ímpeto que o Agamben chamaria econômico ou governamental) é uma ordem fundada em leis. A ordem fundada na norma social é compreendida, em Durkheim, como uma cadeia factual, ou seja, com uma normatividade próxima a das ciências naturais. Mas isso é só uma visão sobre ela. As normas nela apresentadas podem ser buscadas em uma perspectiva que, em homenagem ao trabalho do Weber, pode ser chamada compreensiva.
Então você tem normas de duas espécies, uma organizadora da realidade, de comando, e outra que dá sentido ao objeto sociedade. Elas parecem então estar em dois níveis de observação diferentes: as primeiras, organizadoras da realidade, observadas a partir da relação de comando; as segundas, explicativas da realidade, observadas a partir da relação “científica” sujeito-objeto. Mas a grande verdade é que, se a partir de uma determinada perspectiva, essa constatação é real, ela nega uma outra mais importante. Que as leis, ou seja, qualquer norma organizadora da realidade, são feitas por um povo e para um povo. Todas as normas, mesmo as religiosas, retiram sua normatividade, ou seja, seu poder coercitivo, de uma relação de forças que se dá no seio de uma determinada comunidade. Digo mesmo as religiosas porque, nesse caso, para o observador científico, é desimportante a fundamentação transcendente (Agamben, remetendo às discussões medievais chama isso, em seu O Reino e a Glória, de ordo ad Deum, entre outros nomes) ou imanente (ordo ad invicem) de uma determinada norma. Até aqui não falei nenhum mistério do universo. As normas que se estabelecem em uma determinada comunidade baseada na dinâmica de forças influenciam e são influenciadas pelas normas de caráter organizador da realidade. Peraí. São influenciadas? São. A normatividade organizadora da realidade, ao ser posta em ação pelos agentes por essa atividade responsáveis, entram novamente no sistema como normas sociais. Estou tentando fazer uma curta análise compreensiva da estrutura da normatividade social a partir da relação entre fatos sociais que se dão em esferas da sociedade diferentes para mostrar como elas se entrelaçam em um nível bem básico. Como comportamentos não jurídicos influenciam os jurídicos, como os não religiosos influenciam os religiosos, como os jurídicos influenciam os religiosos. Tudo isso partindo da premissa que nenhuma relação que se dá entre quaisquer pessoas em qualquer posição da sociedade é uma relação de mão única. Por que afirmo essas obviedades? Porque me parece que estudar a ordem é a vocação do Direito mais que o estudo da mera lei. Tem gente que já fez isso. O trabalho do Schmitt, em especial O’ nomos da terra, é um exemplo. Ele persegue, durante o livro, um critério de ordenação da realidade que seja próprio da Europa do Estado Moderno. Mas, logo no começo do livro, ele apresenta outros critérios de ordenação, como o do Sacro Império Romano Germânico. E ele usa, dentre outros argumentos, a carta de um monge para substanciar suas alegações acerca do papel de katechon. Então aqui, se esse for um tema adequado ao Direito, não devemos discuti-lo a partir de uma perspectiva legalista. Mas por que esse tema seria adequado ao Direito enquanto disciplina acadêmica? Porque os juristas têm cada vez mais participado da atividade legislativa. Ou seja, cada vez mais eles estão substituindo a vontade do legislador, esse grande fetiche liberal, pela sua vontade. Se instrui-los acerca da ordem de uma determinada comunidade não vai resolver qualquer problema de grande política, pelo menos vai servir, por mais deficiente que seja o ensino, como começo de desenvolvimento de uma possível responsabilização, não jurídica, mas social do magistrado, e aí talvez haja menos magistrados enchendo a boca para falar acerca do papel de vanguarda iluminista do Supremo. No medievo havia uma espécie de texto chamado principum specula, o espelho dos príncipes, que funcionava como uma espécie de guia de bom governo para a autoridade. A origem muito variada das dicas dada nessa espécie de texto quebra com qualquer alegação de que ele, se certamente advinha geralmente das classes letradas, deixava de refletir em absoluto as conclusões que a cultura popular produzira acerca do bom governo. E, devido à ainda baixa complexidade do aparelho de governo, a maior parte das lições era voltada para as ações do príncipe, constituindo verdadeiros manuais de ética de governo. A tecnicização da sociedade sem dúvida fez com que o treinamento das autoridades responsáveis pela tomada de decisões dentro da esfera que hoje chamamos jurídica (mas que inclui temas que antes eram decididas por outras autoridades fundadas em um sistema normativo em absoluto distinto do que hoje conhecemos como jurídico, apesar de assim ser considerado à época) focasse muito mais no aprendizado de justificações causais fundadas em uma leitura superficial (o que não é necessariamente pejorativo — é um dos métodos possíveis e é o adotado, ao menos nas varas de 1ª instância) da norma já produzida (judicialmente ou legalmente). No entanto, o magistrado, posto diante de uma decisão que envolve a ponderação ética, é incapaz de toma-la, não no sentido de que é impossível que ele a tome, afinal ele vai toma-la, mas no sentido de que ele não tem o instrumental necessário para toma-la com qualidade. Por isso que o estudo da ordem é fundamental hoje (não que o magistrado enquanto nativo já não saiba qual é a ordem — mas ser capaz de formula-la e dar-lhe o devido valor enquanto portadora de sentido social legítimo são outros quinhentos). Assim, esse estudo, pela própria cadeia produtiva dessa espécie de conhecimento, que envolve atores de diversas áreas, já se apresenta como meio (mais democrático do que o que existe) de regular a atividade da autoridade no exercício de sua discricionariedade. Isso é um lado. Como identificar os parâmetros da ordem é o outro lado. Aí me parece que a questão da forma de vida que o Agamben, através do Wittgenstein, trata é útil. Não na ontologia que o Agamben desenvolve a partir do conceito. Minha questão é voltar ao básico “vida como linguagem”; e aqui uma linguagem que não se restringe necessariamente à falada, mas que combina a hipótese Sapir-Whorf com todos os fenômenos que dela podem ser extraídos. Eu tenho 50 palavras para neve? Eu uso elas em que contextos? Quando eu olho para a neve mais branca ou mais escura, eu entendo ela diferente. Essa é a questão. O entender. Entender esse que é o grande objetivo da sociologia. Entender por dentro para conseguir extrair sentido a partir de um fora (o fora aqui que eu digo é o do observador “científico” — sempre com aspas, não de descrença, mas de desconfiança). O que eu quero dizer ao afirmar que é linguagem e por afirmar que é linguagem é que essa expressão tem sentidos internos que podem ser racionalmente (razão aqui como meio, não como ideal de organização social, razão iluminista) compreendidos e articulados verbalmente (e, portanto, politicamente, na forma aristotélica de gênese política fundada na fala, que aqui se expande um pouco). Esses sentidos podem ser paradoxais, sem nenhum problema (como no exemplo dado por Becker, citando Malinowski, logo no início de sua obra Outsiders). A política é para a multiplicidade, não para a unidade, diz Aristóteles contra Platão. A compreensão e a formulação desses enunciados vinculados a formas de vida abre espaço para uma militância esclarecida. Esclarecida sobre o que? Sobre coisas boas e ruins. Pode se estar diante de uma sociedade que cultive valores anti-emancipatórios, por exemplo. Pode-se negar a ideologia do discurso jurídico: os nomes podem esconder ou relações de dominação “pura” (muitas aspas — nenhuma dominação é pura), ou seja, nas quais predominam os aspectos coercitivos, ou ainda relações voluntárias de poder “inconvenientes”, ou seja, anti-emancipatórias. Pode-se almejar à construção de meios de existência e cultura de comunidades que vivam formas de vida não entregues ao capitalismo maquínico, uma discussão que não passa por direitos subjetivos, mas por competências legislativas. Um exemplo disso é o das comunidades intencionais nos Estados Unidos da América. Pode-se permitir a reflexão por parte de uma determinada comunidade acerca dos sentidos e princípios (aqui se quer dizer princípios não jurídicos, mas organizadores da vida, ainda que não de forma coercitiva — como quando se diz “fulano é um homem de princípios”) que orientam as atividades dos membros dessa ordem de forma mais ampla. Como instrumento de pesquisa também é muito promissora essa abordagem das formas de vida. Podem ser feitas projeções futuras com base em jogos (já existe, até, na verdade, um joguinho exemplificando a teoria de Axelrod sobre a cooperação — mas aqui eu quero dizer jogos de entretenimento mesmo, tirados de seu ambiente natural e utilizados para o estudo através do desenvolvimento de suas nuances e complexidades — jogos de RPG, de construção de civilizações ou cidades, de guerra etc) ou, como eu pretendo, focar em uma comunidade muito específica e extrair de lá o que justifica o vínculo comunitário ser muito mais voltado para a questão da comunidade de sentidos do que da mera cocidadania. No meu caso, o tema é Heavy Metal e imaginário político reacionário. Mas o que interessa aqui é o método. Eu pretendo usar entrevistas voltadas para a percepção de opiniões gerais, de opiniões acerca de letras e de opiniões acerca da própria cena emitidas por músicos, bem como estou estudando a possibilidade de elaborar uma semiologia musical fundada nos trabalhos de Fabbri, Stefani, Tagg e da Claudia Azevedo (esse último mais voltado para o Heavy Metal mesmo), além de informações mais objetivas, como origem social dos músicos, por exemplo, para construir um conteúdo de uma ordem “desviante”. E por que eu quero fazer isso? No caso do Heavy Metal, porque é uma ordem que tem um impacto na realidade muito claro — como foi o caso da onda de crimes na Noruega no começo da década de noventa, praticados pelos músicos da nascente cena do Black Metal norueguês. Mas não só por causa disso. Quando se está diante de uma ordem dessa espécie, verifica-se que o que está ocorrendo é a exploração de outras possibilidades político institucionais através do estudo das dinâmicas de forças e de suas manifestações externas e o construir de uma nova política (que pode ou não ser melhor que a de hoje). Quando se diz que se está diante de uma ordem “desviante” reitera-se o termo outsider, que, quando usado na forma dada a ele por Becker, com toda a sua crítica, é ótimo. O que não pode é olhar para essas comunidades, seja a do sertanejo, seja a de La Salada (refiro-me a esse texto: https://medium.com/mil-brechas/por-uma-texturologia-do-poder-1345217df4d5), seja a dos músicos de Heavy Metal vinculados à extrema direita, e só taxa-las de desviantes. Isso é ser leviano diante de uma ordem diversa da “normal”, mas que, em uma relação tensa e íntima com ela, não só se define, mas a define. Texto de: Guilherme Klausner