* Texto de Ana Beatriz Oliveira Reis (PPGD/UERJ)
O texto “Macunaíma (1928)”, de Lúcia Sá (Universidade de Manchester), faz parte do livro “Literaturas da Floresta: textos amazônicos e cultura latino-americana”, publicado em 2012 pela editora da UERJ. A obra sistematiza as pesquisas da autora sobre diversas literaturas e apresenta um guia para a compreensão da narrativa ameríndia. Lucia Sá percorre as tradições orais da Floresta Amazônica, perpassando por diversas regiões brasileiras e pelos países que fazem fronteira com o nosso. Originalmente publicada em inglês, a obra é dividida em quatro partes: Roraima e os Caribes; O grande território dos tupis-guaranis; A confluência do Rio Negro; Os arauaques do Alto Amazonas. Nesse percurso, a autora revisita algumas obras de grandes escritores a fim de destacar a intertextualidade com as narrativas indígenas.
O capítulo Macunaíma (1928) situa-se na primeira parte do livro e tem como objetivo trazer uma releitura da obra de Mário de Andrade com ênfase na sua relação com a cosmologia indígena presente no Estado de Roraima, na fronteira com a Venezuela. Para a autora, as abordagens precedentes sobre a obra não analisam as fontes indígenas adequadamente. Logo, ela inaugura um novo olhar sobre um dos grandes clássicos da literatura brasileira.
Inicialmente, Lucia Sá resgata as principais vertentes do debate que se deu em torno de Macunaíma desde a sua publicação. Destaca-se, de um lado, a análise estruturalista de Haroldo de Campos realizada em “Morfologia de Macunaíma” (1973). Do outro lado, a crítica de Gilda de Mello e Souza à análise de Haroldo de Campos, presente em “O tupi e o Alaúde” (1979) com uma interpretação alegórica da obra.
Por intermédio de uma conexão mais íntima entre Macunaíma e os textos indígenas que serviram de fonte para Mário de Andrade, a autora deseja complementar as interpretações anteriores da obra. Para Lucia Sá, os textos indígenas, até então, nunca foram analisados seriamente. Ela pretende demonstrar ao longo da sua argumentação o que se ganha quando essas fontes são adequadamente consideradas e o que se perde quando não são consideradas.
Eis os principais elementos que a autora resgata para devolver Macunaíma às suas origens indígenas.
Um primeiro aspecto que a autora destaca é a origem pemon de Macunaíma cujas características estão presentes em várias narrativas indígenas, em especial, na obra publicada por Kock-Grunberg “Makunaíma”. São os heróis pemons, com certos traços de trickster, que sedem ao Macunaíma de Mário de Andrade sua capacidade de (se) transformar, de criar problemas, de encontrar soluções. A criatividade pragmática é uma característica que se apresenta em diversos momentos das andanças de Macunaíma.
Essa criatividade pragmática de Macunaíma revela um herói dinâmico, não determinado pelas estruturas. Suas atitudes surpreendem e revertem situações que poderiam ter um desfecho previsível. Essa capacidade de transformação pode servir de inspiração para a prática política que não quer mais beber nas fontes da tradição e que almeja a construção do novo criando condições de desestabilização do opositor.
Em seguida, a autora questiona a análise estruturalista de Haroldo de Campos que faz pouco uso das narrativas indígenas. Campos utiliza o modelo do formalista Russo Vladimir Propp, o que seria questionável para Lúcia Sá uma vez que esse modelo concentra na “sintagma medular” da narrativa, ou seja, a procura pela Muiraquitã perdida. Logo, a partir da interpretação de Haroldo de Campos, as narrativas indígenas assumiriam um papel secundário na obra.
As narrativas indígenas assumem papel central na obra de Mário de Andrade seja pelas características trickster do herói, pela explicação etiológica das coisas, pela não dualidade entre bem e mal, pela ontologia da diferença, ou ainda, pelo desfecho. São muitos os elementos da cosmologia indígena presentes na obra sendo a procura da Muiraquitã mais uma das histórias que compõe a rapsódia, não assumindo um papel de relevância.
Lucia Sá resgata ainda a forma narrativa dos contos etiológicos presentes em Macunaíma. Os contos etiológicos têm por objetivo explicar a origem das coisas que, na literatura pemon, muitas vezes têm sentido sagrado. Eles ainda têm a função de reafirmar a importância da metamorfose nas narrativas pemons.
Em outro texto de autoria de Lúcia Sá (2020), ela relaciona a forma narrativa indígena ao Perspectivismo de Viveiros de Castro. Ao trazer o perspectivismo de volta às histórias que o inspiraram, pretende-se que ele ajude a melhor compreender a forma narrativa indígena. Sua hipótese parte do seguinte questionamento “se o pensamento ameríndio amazônico se baseia em outra ontologia (…) não deveria então a maneira amazônica de contar histórias (sua forma narrativa) ser necessariamente diferente?”
A autora ressalta a filosofia indígena amazônica como um sistema filosófico localizado no corpo baseando-se na diferença e não na identidade. Humanos e animais compartilham a característica comum de “gentitude” sendo os animais parte ativa do processo de transformação do mundo. Mesma alma, corpos diferentes.
Outra característica da forma narrativa indígena é que, diferente de outras formas narrativas da tradição ocidental, elas não pretendem um desfecho que restaure a ordem. No final das narrativas indígenas é comum depararmo-nos com uma transformação. A reparação da ordem estaria ligada à tese de Haroldo de Campos com a ênfase na Muiraquitã perdida e encontrada. Já o desfecho de Macunaíma, momento em que ele se eterniza em forma de estrela, relaciona-se com a ideia de transformação presentes nas narrativas indígenas.
Distinto aspecto levantado por Lucia Sá é o papel de Jiguê, irmão de Macunaíma. Na análise de Haroldo de Campos, Jiguê é visto como um oponente fracassado de Macunaíma e, essa disputa, seria a segunda linha narrativa da obra. Para Lúcia Sá, Mário de Andrade não se vale da oposição entre bem e mal que também não está presente nas narrativas pemons.
Ainda sobre a forma narrativa indígena, nela podemos perceber uma ontologia baseada na diferença e não na dualidade. Nas histórias de amor, por exemplo, animais e humanos se casam e as diferenças coexistem e não se resolvem. Nesse contexto, os conflitos e as diferenças podem ser produtivos por promoverem mudanças, eles são parte do processo de transformação.
Lúcia Sá aponta ainda que Macunaíma é um texto definido como um mosaico, uma bricolagem ou, ainda, uma rapsódia. Nesse sentido, difere-se da interpretação de Gilda de Mello e Souza segundo a qual Macunaíma seria a combinação de dois sistemas, o indígena e o outro europeu. Na análise de Gilda, contudo, o sistema europeu se sobressairia uma vez que este sistema garantiria a estrutura da narrativa enquanto a narrativa indígena estaria na superfície do romance.
Embora Gilda de Mello e Souza apresente uma ruptura em relação a análise estruturalista de Haroldo de Campos, ela não deixa de revelar uma abordagem que pouco visibiliza as narrativas indígenas na obra de Mário de Andrade. Conforme demonstrado por Lúcia Sá, mais do que inspiração para o autor de Macunaíma, a forma da narrativa indígena também está presente. Da explicação etiológica das coisas à criatividade pragmática, é possível perceber que a relevância da cosmologia indígena para além da superfície da rapsódia.
A autora resgata Macunaíma como um transformador subversivo, sendo que suas transformações operam, sobretudo, no domínio da linguagem. Essa característica, mais uma vez, remete aos heróis tricksters das narrativas pemons. A transformação é essencial para dominar a máquina, ou seja, para que Macunaíma enfrente os desafios que encontra na cidade de São Paulo.
Outro ponto relevante é a inversão de posição exercida por Macunaíma de colonizador quando descreve a cidade de São Paulo. Desse lugar estranho são ressaltados aspectos a partir das referências à Amazônia, o lugar conhecido pelo nosso herói. Na carta para as icamiabas essa inversão é bastante explicitada.
O encontro com o outro é um dos maiores ganhos das experiências de Macunaíma. Os moradores da cidade grande passam aprender com o jeito indígena de olhar para as estrelas do nosso herói trickster. No episódio da “Bolsa de Valores”, por exemplo, as ações subversivas de Macunaíma têm um efeito perturbador sobre as pessoas da cidade.
Em Macunaíma está presente a pluralidade de sujeitos que compõe o que chamamos de Brasil. Nessa multiplicidade de modos de existência, de linguagens e de símbolos, a busca da brasilidade, mais do que encontrar um denominador comum, deve privilegiar as possiblidades de coexistências desses jeitos de estar no mundo tão plurais. A recusa à identidade nacional pode ser uma possibilidade de reconhecimento das diferenças.
O retorno de Macunaíma para sua terra e o desfecho da narrativa não se assemelha aos contos que têm um final feliz. Esse é mais um dos aspectos que revela a proximidade entre a obra de Mário de Andrade e as narrativas pemons e o distancia das narrativas europeias. Além disso, o herói que volta para a sua terra não é o mesmo que saiu sentindo-se cindido a partir das suas experiências em lugares estrangeiros. Mais uma vez, a lógica da transformação, recorrente nas narrativas indígenas, aparece na trajetória de Macunaíma. O herói que retorna às suas origens não é mais o mesmo. O encontro com o outro é, então, transformador.
Lúcia Sá conclui que as narrativas indígenas fornecem ao romance a maior parte de suas tramas e de seus personagens, não servindo apenas de matéria prima para Mário de Andrade. A forma narrativa indígena também está presente. Para a autora, o herói nacional não se define pelas qualidades bom ou mau, mas sim por uma criatividade pragmática, pautada na mudança e na imprevisibilidade. Macunaíma não seria um anti-herói, mas um herói pemon interagindo com a sociedade brasileira.
Essa recente leitura sobre Macunaíma, além de devolver o herói às suas origens, abre novas possibilidades de reflexão sobre essa importante obra da literatura nacional. As questões enfrentadas por Mário de Andrade em 1928 ganham novo fôlego quando reformuladas a partir dos elementos da cosmologia indígena. Pensar por intermédio da diferença e não da identidade, por meio da multiplicidade e da transformação, nos provoca a questionarmos as atuais práticas políticas e instiga a buscar o novo, o imprevisível, o surpreendente que coloca em xeque as estruturas engessadas da sociedade.
Referências
SÁ, Lúcia. Histórias sem fim: perspectivismo e forma narrativa na literatura indígena da Amazônia. Itinerários, Araraquara, n. 51, p. 157-178, 2020.
________. Literatura da floresta: textos amazônicos e cultura latino-americana. Rio de Janeiro: Ed UERJ, 2012 [Cap. 2, pp. 79-121].