Nas primeiras linhas de “Genealogia da Moral”, Nietzsche anuncia a profundidade do desconhecimento do ser humano acerca de sua humanidade e de sua condição enquanto Humano 1. As notas do subsolo, extremamente curtas se comparadas com outras obras reconhecidamente extensas do romancista russo, não deixam a desejar em profundidade literária em momento algum por seu número de páginas. O diálogo constante com o psicológico, a loucura e o absurdo são elucidados ao final do livro com a expressão “vida vivida”. A vida vivida não é uma simples descrição do aparente e do exterior e não deve ser confundida com um “realismo”; a vida vivida é o aspecto mais enterrado e obscuro da psiquê, aquilo que não pode e nem se deseja que seja mostrado, mas que habita em todos. As contradições do autobiografado não são tão absurdas e descoladas do que interpretamos como real ou visível, a Humanidade que pesa sobre seus ombros é a mesma que pesa sobre os nossos. A (des)honestidade da autobiografia: um autobiografado fora do ordinário? Diferentemente de outros gêneros textuais que camuflam a duplicidade entre autor e personagem 2, a autobiografia é suis generis não apenas por explicitar esse duplo, mas por tornar o autor protagonista de sua própria história. Geralmente iniciadas com os elementos nome, idade, lugar de nascimento e sexo e seguidas de eventos marcantes para aquele sujeito-escritor, evidenciam o destaque atribuído a algumas características como partes constitutivas do ser. As notas autobiográficas do personagem são inovadoras neste sentido, não iniciam com a estrutura “Fulano, X anos, carioca, masculino”, embora os elementos idade e lugar sejam revelados posteriormente. Esse deslocamento de narrativa demonstra não apenas um conflito intenso com o estar no mundo, mas também um rebaixamento de tais fatores formadores de personalidade. É a partir de sentimentos como ressentimento e ingratidão que o personagem inicia sua introspecção, ou seja, ele não pode se entender enquanto si e enquanto sujeito até desbravar as neblinas de sua própria humanidade. O processo “de fora para dentro” não o impede de discorrer sobre algumas de suas vivências (isso se torna explícito e anunciado na parte dois), embora o texto tenha sido aparentemente estruturado para a parte primeira ser um prelúdio e um quase pedido de desculpas pelo turbilhão de memórias que anuncia. As notas autobiográficas questionam a própria autobiografia como se evidencia em: “[...] é possível alguém ser sincero consigo mesmo e não temer toda a verdade? A propósito: Heine afirma que é quase impossível existiram autobiografias sinceras, porque na certa o ser humano mentirá, falando de si mesmo. [...]”. Assim, ao focar em questões universais, ele busca ganhar um voto de confiança de seus “leitores”3, não é como os outros autobiógrafos que alimentam o próprio narciso ao relatar diversas vezes a própria perspectiva e histórias que ninguém mais se predispõe a ouvir. O “eu” invalidado e os espectros que o rondam: homem sem defeitos ou qualidades As mulheres de Atenas de Chico Buarque 4, que não tem gosto ou qualidade, estão em um patamar superior de humanidade em relação ao ser dostoiévskiano. Aliás, como o próprio bem elucida, nem é merecedor de se metamorfosear em um inseto tal qual Gregor Samsa, a única qualidade que gostaria de ter é aquela que todos em quarentena buscam desesperadamente extirpar, a preguiça: “Ah, se eu não fizesse nada unicamente por preguiça! Meu Deus, como eu me respeitaria! E me respeitaria precisamente porque teria a capaci- dade de ao menos possuir preguiça; pelo menos eu teria uma caracterís- tica quase positiva, que eu mesmo teria a certeza de possuir. Pergunta: quem é ele? Resposta: um preguiçoso. Seria mais do que agradável ou- vir tal coisa a meu respeito. [...]” Um ser sem qualidades ou defeitos flerta com o não-humano ou com uma definição totalmente inovadora de ser. Ele, o sem nome, tem um status inferior à própria “coisa”, nominada e adjetivada: o celular é bom, a bola é redonda, etc. Não apresentar fatores tão relevantes como seu nome e suas características pode demonstrar, a priori, o profundo desprezo que ele sente por si, inferior a qualquer material que ocupe um espaço no Planeta Terra e tenha Massa. Afinal, o nome é como o sujeito se identifica perante os outros e perante a si mesmo 5, é interligado a um conjunto de emoções íntimas e personalíssimas (primeiro chamar da mãe, variações do nome em apelidos carinhosos ou jocosos na infância e também a bronca após cometer um erro). Esse suposto estranhamento em relação ao mundo em seu entorno revela, ao longo da trama, não um complexo de inferioridade do personagem, muito pelo contrário, mas sim aparente superioridade intelectual e cultural. O sentimento de ser considerado um pária é, na verdade, um excesso de importância dado a si mesmo, todos o observam, todos têm um juízo de valor sobre ele. A contraditoriedade do personagem em relação à sua autodescrição se irradia sobre a sua afirmação de não ter defeitos ou qualidades, vários “deslizes de caráter” camuflados são enunciados conforme escreve suas notas biográficas. A alegria em provocar irritação alheia (para os falantes da língua do pai da Psicanálise, ,,Schadenfreude“) não o torna necessariamente mau, e sim alguém que gosta de provocar os outros, embora se acalme após um chá. O sentimento desencadeado depois de ser tratado como uma “mosca” em um bar e suas tendências “stalkers” não revelam vingança de sua parte ou inveja, mas sim alguém que tenta a todo custo recuperar uma suposta honra perdida. A comunicação constante com seus leitores invisíveis, referidos como “senhores”, demonstra o seu “excesso de amor-próprio”. Apesar de sua taxatividade ao afirmar que escreve para buscar alívio e que nunca seria lido por quem quer que seja, esses espectros o rondam a cada linha. As suas opiniões esquizofrênicas são uma tentativa de agradá-los sem se comprometer nunca, gerando frustração e falta de lealdade com as próprias convicções. O personagem vai além do mero desejo de aprovação social, na verdade, ele se valida inteiramente e unicamente a partir das reações do outro sobre sua própria pessoa. A validação se distingue da aprovação na medida em que impõe necessariamente um beneplácito para ser considerada efetiva, o objeto inválido existe, mas é incapaz de alterar a realidade. O inválido transcende a Ordem, tem uma existência insuficiente porque nunca sequer passou pelo crivo da aprovação que, por sua vez, apenas analisa se algo é bom ou não, está intrinsecamente, não necessariamente, ligada a valores subjetivos. O despimento de caráter resulta da invalidade dele perante o mundo à sua volta, é um eterno estranho indefinido, não é coisa nem pessoa. A existência do personagem é inteiramente condicionada a uma espécie de duplo que o outro desempenha neste caso, ele só se torna minimamente humano ao se aproximar de uma validação. Isso se torna evidente com a possibilidade de visita da “dama da noite” à sua casa, em que se vê pela primeira vez como efetivamente alguém. A manifestação do humano se dá não apenas pela validação e aprovação por esta mulher, mas também por sua admiração. Pela primeira vez, ele se autodenomina “herói”, há um ímpeto de se reconhecer enquanto humano impulsionado pelo erótico representado pela mulher que, assim como ele, precisa desesperadamente de ser resgatada. Entende-se aqui por “manifestação do humano” momentos nos quais há algum indício de nominação e características. O herói se desmascara e se torna um embuste, nunca salvou uma donzela em apuros e seria incapaz disso, afastando o único resquício que poderia acender qualquer chama de humanidade nele. Ao objetificar seres supostamente mais fracos e inferiores a ele, a mulher, torna-os imediatamente superiores a ele, que nem objeto pode ser. O Ocidente ressentido, a Ciência soberana e o Homem Racional: diálogos com Kant Ainda que o ânimo de ultrapassar a mediocridade permeie todo o texto, “medíocre” certamente não comporta todos os aspectos da autobiografia e tampouco o anti-herói insuficiente para se definir como tal, profundamente intenso em todas as conotações da palavra. Órfão de pai e mãe, abandonado, relembra de como se agarrou a Livros Eruditos a fim de se distinguir de seus pares e de chamar a atenção de seus professores para si, “Ah, se eles soubessem o quanto sou culto!”; “se eles soubessem o quanto sou diferente!”. O paradoxo “de fora para dentro” até então analisado não é o único evidenciado no texto, a virada do raciocínio dedutivo para o indutivo (particular para o geral) a partir desses trechos evidencia a tensão entre “eu” e “outro” analisada acima e a mudança de padrões de hierarquia social decorrentes da profunda transformação do Ocidente com o advento da Modernidade. Com a ascensão do Cristianismo no Ocidente, uma ferida é aberta: sociedades anteriormente baseadas em padrões aristocráticos como “sangue” passam a ser baseadas em valores cristãos interiorizados como amor ao próximo, honrar pai e mãe, amar a Deus acima de todos e de todas as coisas. A validação antes necessariamente visual pelos símbolos associados à “pureza” passa para um campo extremamente difícil de identificar, a “alma”. O conflito vivido no texto é, na verdade, o de toda a Modernidade: como exteriorizar seu valor enquanto ser humano se os padrões de validação estão no campo do eterno, do que está oculto? Se me permitirem um salto histórico e sociológico, as formas de validação “pós-modernas” como as redes sociais e o padrão de vida “ostentação” seriam formas de tentar “sarar a ferida” ao deslocar os modos de validação internos para externos (quantidade de seguidores, fim de semana em Noronha, etc.). O paradoxo interiorização-exteriorização revela, ainda, a interpretação complexa que o autobiografado faz da ética kantiana. Seria pueril afirmar que as únicas linhas traçadas entre as notas e Kant são as menções um tanto quanto jocosas a “Belo e Sublime”. Embora os valores ocidentais tenham deslocado os parâmetros de validação para o foro íntimo, eles não deixam de ser exteriorizados através de ações consideradas compatíveis com o Pensamento Cristão: alimentar os necessitados, amparar as viúvas, etc. A aprovação desses feitos por parte da sociedade não os torna morais se analisados estritamente a partir do Imperativo Categórico. As ações do personagem que aparentemente condizem com os valores cristãos, além de não serem validadas ou aprovadas, não passam no “teste" da Lei Universal da Moral, nenhuma delas condiz com um dever, são motivadas puramente por uma necessidade de adequação ao outro.6 Um dos maiores pontos de tensão com a Ética kantiana se dá com o convite “Tente objetar” feito aos leitores. O “tente objetar” se refere exclusivamente a questionar a Ciência como inteiramente racional, isenta de erros e contradições usualmente atribuídas às Ciências Humanas. A razão e a matemática, expoentes iluministas da libertação e clareza do homem, são feitas por e para homens, seria impossível deixá-las inalcançáveis ao campo dos sentidos. Se por um lado esse imperativo supõe um empoderamento ou rebeldia contra a ditadura da Ciência absoluta, por outro demonstra o dogmatismo por parte dos cientistas e as consequências de tentar se objetar a um conhecimento tão solidificado quanto dois mais dois é igual a quatro 7. O “tente objetar” soa mais como um desabafo frustrado de quem já lutou para transpor tais muros e foi infeliz no resultado. Tentar universalizar uma condição extremamente abstrata e desconhecida quanto a do homem racional e iluminado é um dos pontos mais contraditórios do pensamento iluminista e é justamente contra ele que o texto se insurge. De volta para Nietzsche, como universalizar a Humanidade se somos dela os maiores desconhecedores? Qual a diferença entre Cleópatra que gostava de espetar suas escravas com agulhas de ouro para vê-las sofrer e nós, os civilizados? Não se trata de um manifesto panfletário contrário à humanidade ou ao princípio da Dignidade da Pessoa Humana, é um manifesto contra a banalização de conceitos tão relevantes que pretendem ser universais. Ao desafiar os padrões mínimos para que se conceba alguém como humano, o personagem põe em xeque as concepções de uma condição inerente compartilhada mundo a fora. O homem que se deixou revelar nas notas do subsolo certamente escapa de todos os parâmetros iluministas no campo da moral e da racionalidade, é inteiramente movido por seus vícios e paixões. A sua humanidade, afinal das contas, talvez tenha sido se deixar levar pelo seu inconsciente e pelo seu “eu” no éter dos sentidos em épocas de Enciclopédias e Compilações do conhecimento. Notas de Rodapé: 1 Para relação entre Dostoiévski, Nietzsche e ressentimento, conferir: BITTENCOURT, Renato Nunes. Dostoiévski, Nietzsche e as marcas deletérias da vida ressentida. Theoria-Revista Eletrônica de Filosofia. Porto Alegre, volume 3, número 07, Páginas 35-62, 2011.Disponível em: https://www.theoria.com.br/?p=47 (Acessado em 17/08/20). 2 Em poemas ou romances, por exemplo, por mais que os versos e as narrativas se mostrem fidedignas às experiências do poeta ou do escritor, não é possível afirmar que são as vivenciadas pelos autores, são unicamente do eu lírico e dos personagens. Uma obra literária certamente é fruto de uma gama de vivências de quem a “põe no mundo”, mas esse produto final certamente não é tão explícito quanto a autobiografia. 3 O vocábulo leitores é empregado entre aspas, porque indica uma contradição que será analisada na próxima seção. 4 Disponível em: https://youtu.be/MabbVn0Rlv4 (Acessado em 17/08/20) 5 É interessante como a criança se percebe enquanto um ser distinto dos outros através do espelho e do nome, ainda que não exclusivamente. Ao ser perguntada de quem é o reflexo no espelho, é comum que responda o próprio nome até conseguir cognitivamente assimilar que o nome é, na verdade, o “eu". Os animais domésticos desconhecem seus nomes, mas o identificam através do timbre da voz de seu companheiro humano, bem como consegue distinguir quais ações são repreendidas ou não. 6 O termo o “outro" é polissêmico no dicionário filosófico, utilizado desde Simone de Beauvoir para situar as condições históricas, culturais e sociais da mulher em relação homem no seu primeiro volume do “Segundo Sexo" a vertentes marxistas atuais para analisar a dominação econômica a partir de uma lógica de “outrificação". Por isso, é preciso esclarecer que o “outro" é empregado em dimensões tanto físicas quanto mentais, não no sentido das vertentes mencionadas. O “outro" assume a conotação de um ser existencialmente distinto que por vezes opera como um duplo do próprio personagem. 7 Um debate interessantíssimo com vários nuances sobre a racionalidade da Matemática mais contemporâneo do que nunca (embora remonte a Pitágoras) pode ser sintetizado nas seguintes questões: Os números foram inventados ou descobertos? Se os números foram inventados e são apenas símbolos, por que dois mais dois é igual a quatro e não cinco? A matemática é uma linguagem? O quão racional é uma ciência que se aproveita do acaso e de erros humanos? Esses temas foram brevemente debatidos no Programa transmitido pela Deutsche Welle em sua transmissão ,, Auf ein Wort “ disponível em: https://youtu.be/RPjHuxCES9Q (Acessado em: 15/08/20).
Notas do subsolo (Fiódor Dostoiévski), parte I:
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