Por: Helena Marques
O filósofo Michael Foucault, em meio de tantas obras, escreveu dois textos que conversam entre si: Capítulo V- O Direito da Morte e o Poder sobre a Vida, da História da Sexualidade e o Capítulo II – Recursos para o Bom Adestramento do livro Vigiar e Punir.
No capítulo II de Vigiar e Punir, Foucault afirma, ao citar Walhausen, que o bom adestramento tem como arte a correta disciplina e, a partir dessa arte, analisa os instrumentos com que ela é imposta sobre os indivíduos. Para o poder disciplinar separar, analisar e diferenciar para no fim fabricar e adestrar os indivíduos, ele dispõe de três instrumentos: a vigilância hierárquica, a sanção normalizadora e o exame. A vigilância hierárquica garante ao poder disciplinar o adestramento do indivíduo através de um jogo de olhares e técnicas coercitivas que induzam os indivíduos a agirem de determinada maneira. Tal instrumento é conectado diretamente à disposição do local em que se pretende alocar o adestramento dos indivíduos. Um local para perfeita utilização da vigilância hierárquica e do bom adestramento seria o acampamento militar, pois nele se molda e constrói o indivíduo segundo a arquitetura do local submetida à hierarquia militar. Também seria um local ideal as escolas jesuítas construídas pela Companhia de Jesus, Ordem dos Jesuítas, onde o prédio é disposto na forma de um quadrado com um vácuo no meio, imitando os centros de detenção e prisão, de onde os alunos podem ser observados e adestrados pelo olhar dos inspetores, professores e diretores. Vale destacar que possuem tais arquiteturas a Pontifícia Universidade Católica do Chile e o Colégio Santo Inácio, no Rio de Janeiro. As instituições disciplinares, para serem perfeitas, devem tudo capturar com um único olhar, de maneira permanente e a que nada escape. O adestramento por meio da vigilância hierárquica, assim como por meios dos outros instrumentos, deve ser feito de maneira discreta e anônima para disciplinar os indivíduos a ele submetido. A sanção normalizadora, outro instrumento do poder disciplinar, é influenciado pelos sistemas penais e preenche o vazio deixado pelos ordenamentos jurídicos devido a baixa importância das infrações cometidas pelos indivíduos. Ou seja, a sanção normalizadora se aproveita das frações mais tênues da conduta para “punir” o indivíduo, ela preenche os vazios dos ordenamentos jurídicos com “normas” que, caso violadas, não geram uma punição física característica do sistema penal, mas uma correção do erro cometido. Tal correção do erro se dá por meio do aprendizado intensificado e repetitivo como, por exemplo, ocorre nos filmes americanos onde, caso o aluno não esteja tendo um comportamento dentro das “normas” da sua instituição de ensino, o professor o obriga a escrever uma frase no quadro várias vezes até preenchê-lo por inteiro, visando o seu aprendizado para que não haja reincidência. Para Foucault, castigar é exercitar o erro até que o deixe de ser. Entretanto, além da correção, ainda visando adestrar os indivíduos, a punição disciplinar se aproveita também do sistema de gratificação e sanção. Esse sistema de gratificação e sanção permite gratificar os bons, aqueles que seguem as normas, e penalizar os ruins, que desobedecem a essas normas. No fim, esse sistema permite que os indivíduos sejam qualificados segundo seus comportamentos e desempenho, marcando os desvios e hierarquizando as qualidades. Porém, mais do que impor uma repressão como o sistema penal, a sanção disciplinar visa normalizar os indivíduos, como o próprio nome “sanção normalizadora” diz. A sanção disciplinar diferencia os indivíduos e os coloca em uma hierarquia com a intenção de criar um indivíduo que possa se encaixar como “normal”, segundo os seus próprios parâmetros. A sanção normalizadora, então, leva a uma homogeneidade dos indivíduos devido à busca de uma sociedade normal. Esse objetivo é atingido por meio da individualização que, através das individualidades de cada um, pode medir os desvios e ajustá-los para se alcançar o que se entende por normal. Por último, ainda como um instrumento do poder disciplinar, há o exame que é o procedimento proveniente de uma combinação entre a vigilância hierárquica e a sanção normalizadora, caracterizando-se, sobretudo, como uma técnica. Na escola, por exemplo, ele se manifesta através das provas escolares e, no hospital, manifesta-se através da inspeção quase constante do enfermo pelos médicos e enfermeiros. Entretanto, o exame não se contenta em apenas avaliar um aprendizado: ele permite que ao mesmo tempo que se avalia o conhecimento do indivíduo, crie-se outro conhecimento sobre as individualidades de cada um por aquele que está avaliando. Além disso, o exame exerce uma forma de exercício de poder de três modos: a inversão da visibilidade quando realizado o exercício de poder, a individualidade como um campo de documentário e, como consequência da referida individualidade documentada, a conversão do indivíduo em um caso. O poder disciplinar, ao contrário do poder em sentido estrito que se manifesta através da força, manifesta-se de maneira invisível, sem que os seus objetos de dominação percebam a sua coerção. O exame é a técnica utilizada pelo poder disciplinar para capturar seus objetos, sem emitir sinais de força. Ele organiza esses objetos de modo que o poder seja visto por eles, mas não percebido, como por exemplo com a revista que o rei faz em seus soldados. Nessa situação o rei está se mostrando para os súditos de forma visível, mas está sendo visto como superior pelos soldados pelo poder invisível que emana dele. Isso seria a inversão da invisibilidade no poder do exercício. Já a questão da individualidade documentada se refere ao fato de que, ao aplicar a técnica do exame, gera-se anotações sobre o indivíduo quando submetido a ele. Tais escritos gerados podem ser utilizados com o objetivo de constituir o indivíduo como um objeto analisável ou para constituir um sistema comparativo entre os indivíduos, formando dados coletivos e estimativas sobre os desvios deles. Devido a essa documentação do indivíduo pode-se, também, formar um caso, ou seja, o indivíduo pode ser escrito em sua própria individualidade e comparado com os outros. Essa especificação sobre a individualidade é mais comum ser feita em relação as crianças ou os doentes e até mesmo em relação ao louco, por serem os mais frágeis da sociedade e divergirem do que seria considerado o normal. Por meio da vigilância hierárquica, da sanção normalizadora e o exame, o poder disciplinar permite o bom adestramento do indivíduo e a sua sujeição ao poder invisível. Já no capítulo V do livro História da Sexualidade I, de nome “Direito de Morte e Poder sobre a Vida”, Foucault dispõe sobre o desenvolvimento do poder sobre a vida. Para Foucault, existe um poder capaz de causar a vida e capaz de devolver o indivíduo à morte, que de desenvolveu ao longo dos anos de duas formas interligadas. A primeira forma de desenvolvimento focou no corpo humano como uma máquina, buscando o seu adestramento, que é fornecido pelo poder disciplinar para adequação a certos sistemas ou objetivos. Já a segunda forma centrou-se no corpo humano como ser vivo submisso à processos biológicos, podendo, então, se proliferar, ter variantes de longevidade e nível de saúde. Tais processos biológicos podem ser submissos a intervenções e controles reguladores, estabelecendo-se uma bio-política da população. A maior forma de controle da população, quanto à seus processos biológicos, seria a sexualidade, pois, através dela, pode-se criar a vida e estabelecer relações pessoais entre os indivíduos. A sexualidade, então, seria o acesso à vida e o corpo, exercendo assim o controle sobre a sociedade, mas, antes dele havia outra forma: o sangue. O simbolismo que o sangue exercia, até o século XIX, delimitava toda a vida do indivíduo em sua existência. O sangue determinava a sua posição na sociedade, onde deveria estar e qual lugar em certo edifício e, principalmente, delimitava como o indivíduo viveria sua vida. A sexualidade, da mesma forma que o sangue, gera procedimentos reguladores da sociedade e que foi feita através de duas linhas de ataque ao longo dos anos. Primeiro, a partir de uma visão reguladora, apresentou a sexualidade infantil como um risco à sociedade e também a histeria das mulheres como forma de conter seus corpos no papel de máquinas de criação de filhos e manutenção da família. Já na segunda linha, não mais de natureza reguladora, a sexualidade buscou o controle de natalidade e o tratamento psiquiátrico das perversões. Dessa forma, o poder disciplinar, tema base do livro Vigiar e Punir de Foucault, converge com o poder sobre a vida, pois, através desse bom adestramento, o indivíduo se torna dócil e útil, submetendo-se a sistemas políticos e econômicos. O capitalismo é o maior exemplo de poder exercido sobre a vida, aproveitando-se da técnica do poder disciplinar para cooptar pessoas a um sistema econômico. Esse sistema capitalista deve a sua implementação efetiva à inserção dos indivíduos na mentalidade chave desse sistema e ao uso deles como equipamento de produção, ambos alcançados pelo poder disciplinar. Assim, o estabelecimento de um normal pelo poder disciplinar, que no caso é o capitalismo, determina como os indivíduos se desenvolvem ao longo do seu crescimento, cerrando algo que deveria ser realizado e feito por eles, sempre a fim de se encaixarem na sociedade. Por meio desse normal, o poder disciplinar exerce um poder sobre a vida. Ainda, também para a sexualidade, o poder disciplinar serviu para implementar a sua segunda linha de ataque, onde controlou a natalidade e o tratamento psiquiátrico das perversões. O poder disciplinar foi chave de implementação do controle da natalidade, pois, através dele, inseriu na sociedade o que seria o normal por meio da vigilância hierárquica, da sanção normalizada e o exame, que incitam o indivíduo a seguir dentro de um parâmetro estabelecido pelo poder. Já para os tratamentos psiquiátricos, foi necessária a utilização do poder disciplinar no que tange o exame e a individualidade documentada. Através dessa documentação gerada pelo exame da individualidade pessoal de cada um, pode-se formar um “caso” e, aqueles que divergiram do normal, foram submetidos à psiquiatria.