Dando continuidade aos estudos sobre a obra da filósofa americana Judith Butler, apresentamos nesse post uma resenha do segundo capítulo de seu novo livro: Força da não violência: Um vínculo ético-político. Na obra, a autora traça um percurso pela ética da não violência na filosofia, ciência política e psicanálise para conectar-se às lutas por igualdade social, retornando ao tema da precariedade e das vidas passíveis de luto. Assim, sua proposta nesse capítulo é identificar, pela filosofia política, uma compreensão de não violência a partir da condição básica de interdependência e de prática de valorização da própria vida.
Introdução
Butler começa o capítulo introduzindo uma diferença na pergunta “O que nos leva a buscar a preservação da vida do outro?” Isso porque seu debate não se insere numa filosofia ou psicologia moral, aos quais a pergunta poderia ser remetida de plano. Nesse sentido, busca apontar uma invariável sobre quando e onde a preservação da vida aparece; ou seja, o que conta como uma vida e quais vidas contam como vivas.
No desenrolar dessa pergunta, a autora almeja se distanciar da busca de um norte moral que balize uma conduta injustificada quanto à negação ou incapacidade de preservar a vida, tanto do ponto de vista de uma motivação – atinente a uma psicologia moral; quanto do ponto de vista da justificativa – pertencente ao campo da filosofia moral. Aqui ela deixa claro que sua intenção é atacar a questão no campo da teoria social e da filosofia política.
Para tanto, a maneira como a questão é colocada é determinante. Se colocada referente a uma pessoa singular, diferentemente do caso de pessoas que são fortemente identificadas como pertencentes a um grupo vulnerável, ou se colocada referente a todos os viventes, presume-se uma relação díade onde um sujeito assume uma posição de poder “afastar o perigo ou impedir uma força destrutiva” (pág. 52) da vida de outro sujeito. Esse enquadramento levaria a uma série de questões pertencentes ao campo de uma filosofia ou psicologia moral. Por outro lado, a pergunta orientada para a preservação de um grupo específico presume o que poderíamos chamar de consideração biopolítica, no sentido de que demanda que questionemos também “quais vidas contam como dignas de preservação” (pág. 52).
Ainda no contexto da pergunta, “O que nos leva a buscar a preservação da vida do outro?”, Judith Butler amplia o rol de sujeitos alvos da interpelação para arranjos institucionais, sistemas econômicos e formas de governo. Seu percurso passa pela psicanálise para compreender as explicações desse campo para não se tirar uma vida e buscar preservar uma. Entretanto, afasta-se da reflexão acerca da psicologia da relação indivíduo – grupo, justamente pois há uma sobreposição dessa relação e até mesmo os dilemas mais individuais e subjetivos nos implicam num universo político mais amplo. Além disso, uma reflexão desse tipo nos leva a questão do paternalismo, que envolve uma série de questões: Quem pertence ao grupo que faz a “preservação” e quem é imaginado como tendo vidas que precisam de “preservação”? “Nós” também não precisamos ter nossas vidas preservadas? É a vida daqueles que fazem a pergunta a
mesma que a vida sobre as quais a pergunta é feita? Para aqueles de nós que fazem a pergunta, consideramos que nossas próprias vidas também são dignas de preservação, e em caso afirmativo, quem é chamado a preservá-las? Ao presumirmos o valor de nossas vidas, presumimos que tudo irá ser feito para preservá-las, de modo que “nós” façamos esta pergunta sobre “Outros” que não vivem com tais presunções? É o “nós” realmente separável daquelas “outras” vidas que procuramos preservar? Se houver um “Nós” que procura resolver este problema, e existem “outros” que são os destinatários de nossas deliberações, então assumimos uma certa divisão, indiscutivelmente paternalista, entre aqueles que têm – ou são investidos com – o poder para preservar a vida (ou aqueles de nós para quem existe um poder que já busca preservar nossas vidas) e aqueles cujas vidas estão em perigo de não estão sendo preservadas – isto é, aqueles cujas vidas estão ameaçadas por uma forma de violência, deliberada ou negligente, e cuja sobrevivência só pode ser contrariada por um tipo de poder compensatório?
A autora traz o exemplo da identificação da vulnerabilidade de grupos para o trabalho de proteção de direitos humanos por parte de grupos feministas ou no âmbito da ética do cuidado. Nessa dimensão, a vulnerabilidade é importante para a requisição de uma proteção especial. Entretanto, essa distribuição desigual da vulnerabilidade faz
emergir os questionamentos anteriores, principalmente entorno de uma essencialização da vulnerabilidade e de um paternalismo quando essas obrigações sociais são mais urgentemente requeridas. Isso se revela quando sujeitos que respondem a uma ética de proteção da vida passam a entender que, moralmente, vulnerabilidade é distinto do poder
paternal. Isso provoca o efeito de uma racionalização moral na hierarquia social que vai de encontro a uma aspiração de recíproca condição de igualdade, chegando a uma situação paradoxal onde políticas baseadas na vulnerabilidade fortaleçam hierarquias que precisam ser urgentemente desmontadas.
Possibilidades de preservação da vida
A partir do questionamento inicial, Butler busca compreender possibilidades de preservação da vida contra qualquer tipo de ameaças, incluindo aquelas que nós mesmo podemos provocar, enfatizando as condições de infraestruturas organizadas com esse propósito. Partindo do exemplo das mudanças climáticas a partir da crítica do individualismo antropocêntrico como um elemento importante no desenvolvimento de um ethos de não violência no contexto de um imaginário igualitário, ela localiza sua reflexão a partir de um ponto de vista imanente ao mundo já construído.
A defesa de um ethos de não violência, no sentido de uma “aspiração normativa que contribua para a formulação de um imaginário político de igualdade radical do luto” (pag. 56), se distancia daqueles dois tipos de reflexão moral, psicologia e filosofia, identificando uma radical distribuição desigual do sofrimento. Entretanto, é preciso fazer um alerta de que não se trata de uma convocação (moral?) para que todos chorem a morte de outra pessoa, mas sugerir, sob uma forma diferente, que quando a perda não é próxima, quando é distante, o luto assuma um senso contínuo de gravidade da perda de uma vida.
Afirmar uma igualdade da passividade de sofrimento por uma vida é afirmar que uma vida, mesmo antes de ser perdida, é, ou será, digna de ser entristecida por ocasião de sua perda, tendo valor em relação a sua mortalidade. Essa distribuição igualitária passaria a estruturar as instituições e a vida social, produzindo toda vida dentro desses termos institucionais como dignas de preservação. Sua perda seria marcada e lamentada, implicando nas formas como pensamos os cuidados de saúde, prisão, guerra, ocupação e cidadania, campos os quais fazemos distinções entre as populações que são mais ou menos importantes. (biopolítica)
Cenários de preservação da vida
Partindo da premissa de que os dilemas morais acerca da preservação da vida são enfrentados a partir de múltiplos cenários, Butler passa a delinear diferentes perspectivas para encarar esses dilemas. A primeira, Kantiana, articula a exigência de determinado comportamento a partir do comportamento do sujeito que formula determinada hipótese numa operação lógica. Nesse caso, deve-se levar em consideração um dever ser hipotético em comparação com o comportamento de quem age. Assim, não deve haver ação a não ser que se enquadre numa expectativa universal (negativo), bem como deve haver ação sempre que se caracterize um comportamento universalmente exigível (positivo).
Uma segunda perspectiva é a denominada consequencialista. Nessa, a análise das consequências indesejadas de uma determinada ação levariam a sua extirpação da vida social. Como a perspectiva anterior, leva em consideração a reciprocidade dos comportamentos. No primeiro caso, a partir da racionalidade de não desejar que um comportamento nocivo se volte contra quem age; e no segundo, ou a partir de um limite das consequências para o convívio social.
Essa dimensão retributiva é, então, fundamental para qualquer experimento moral, onde uma operação imaginativa expropria o ato do próprio sujeito para atribuí-lo a qualquer agente externo. No momento da retribuição desse ato imaginado, atribuído a qualquer um, se indeterminado sua origem, dá ensejo a paranoia. Assim, no cruzamento
com a psicanálise, no que se refere à fantasia persecutória, “o retorno imaginado da própria agressão por meio de uma figura externa dificilmente é uma situação suportável” (pág. 59). A ponte entre esses dois campos, a filosofia e a psicanálise, é fundamental para compreender a ação recíproca como crucial para compreensão da agressão recíproca como constituinte de qualquer laço social. “Se o ato que eu imagino fazer pode, em princípio, ser aquele que eu também sofro, então não há como separar a reflexão sobre a conduta individual das relações recíprocas que constituem a vida social” (pág. 59).
Avançando um pouco mais nas bases de percepção recíproca, a autora recorre a Freud para entender as bases da percepção do outro como ameaça. Para ele, a racionalização da contenção dos impulsos estava em questão, numa posição ambígua entre necessidade e desconfiança da sua eficácia. Esse posicionamento pode ser apreendido a partir de seu argumento de que o mandamento “não matarás” demonstra que o desejo de matar esteve inscrito no sangue dos nossos antepassados até os dias de hoje. Essa pulsão de morte, portanto, permanece inacessível no inconsciente até mesmo quando o indivíduo está integrado em convivência com um grupo.
Butler descreve esse sentimento a partir da distinção entre, por um lado, uma resistência a políticas de reciprocidade, como no caso do fechamento das fronteiras da Europa para imigrantes que chegam pelo mar, ainda que possam desaguar nos resorts luxuosos; e por um outro lado uma satisfação sádica quando há o abatimento, por exemplo, de negros desarmados por parte das forças de segurança, “com impunidade e satisfação moral, como se os mortos fossem presa caçada” (pág. 63).
Ressalta-se que não se deve encarar a não violência de maneira ingênua. Pelo contrário, deve-se encarar seriamente o potencial destrutivo que constitui os laços sociais. Essa postura impõe considerar de forma mais geral o que representa para a vida psíquica o dilema de um preceito moral contra a destrutividade. Esse dilema visa acabar com uma dimensão constitutiva da psique? Na sua impossibilidade, tem outra opção além de fortalecer o superego e sua severa e cruel demandas de renúncia? Freud responde que a renúncia, embora desencadeie uma violência moral contra nossos próprios impulsos, é o que temos ao nosso alcance: “Assassine seu próprio impulso assassino” (pág. 63).
Nos termos do Freud, a pergunta inicial, “O que nos leva a buscar a preservação da vida do outro?”, é feita negativamente: O que, na vida psíquica, se houver, impede qualquer um de nós de causar danos quando estamos nas garras de um desejo assassino?” (pág. 64). Entretanto, argumentando que podemos reformular essa questão vitalizando sentimentos morais, podemos nos perguntar alternativamente: “Que tipo de motivação se anima na vida psíquica quando buscamos salvaguardar a vida de outro ativamente?” (pág. 64). Essas formas de substituição demonstram maneiras pelas quais as vidas estão implicadas umas nas outras desde o início, e esse insight nos dá uma maneira de entender que qualquer ética que finalmente adotarmos não serve para distinguir entre preservar a si mesmo e preservar a vida de outros. (pág. 64).
Pensando junto com Melanie Klein, que argumenta que o desejo da felicidade do outro liga-se a sentimentos de responsabilidade e preocupação, o sacrifício dos próprios desejos em prol da satisfação do outro são entendidos como parte da capacidade de nos identificarmos com sua própria satisfação, recuperando aquilo que foi sacrificado. Klein argumenta que há uma certa projeção fantasmática quando agimos com genuína simpatia com outra pessoa, no sentido de que agimos como um bom pai, ou como gostaríamos de ter sido tratado pelos nossos pais. Um desejo não realizado.
Então, vamos notar que no momento do que Klein identifica como uma identificação substitutiva, essencial para o esforço de fazer o outro feliz e até dar prioridade moral a essa pessoa sobre nós mesmos, estamos encenando e reencenando algumas perdas não lamentadas ou alguns desejos não realizados. (pág. 65)
BUTLER, J. Força da não violência: um vinculo ético-politico. São Paulo: Boitempo, 2021. 168 p.
Avançando um pouco mais, refletindo sobre a vida psíquica do recém-nascido, a autora argumenta que há um passo importante de desenvolvimento quando surgem os conflitos de amor e ódio, e os medos de perder um ente querido. A fantasia de destruir sua mãe gera o medo de perder aquele de quem se é dependente. Esse nível primário de reconhecimento da interdependência indica que, ainda que mude de forma, é a “base psicanalítica para uma teoria do laço social” (pág. 68).
Dessa forma, a culpa transforma-se em reparação quando implicada de maneira produtiva na salvaguarda da vida do outro, a partir da sensação de que uma vida não é uma vida sem outra vida. Entretanto, essa salvaguarda aponta para uma ação futura, espécie de cuidado antecipatório que busca ativamente prevenir o dano que podemos causar ou que pode ser causado por outros, ainda que na dimensão daquilo que apenas desejou infligir, mas nunca o fez. Por outro lado, “proteger” remete a condições para a possibilidade de uma vida se tornar habitável, talvez até florescer. “Protege e reproduz as condições de vir a ser, de viver, de futuridade, onde o conteúdo dessa vida, que viver, não pode ser prescrito nem previsto, e onde a determinação surge como um potencial” (pág. 69).
Seguindo a lógica da reparação da criança de Naomi Klein, ainda que movido pela destrutividade, há o conserto, mesmo que imaginado, porque associado à dependência. Entretanto, argumenta Butler, a reparação não é eficaz: “A teórica literária feminista Jacqueline Rose observa que ‘a reparação pode reforçar a onipotência’”, remetendo até a um desenvolvimento disciplinar imperativo. O contraponto, em Freud, está no fato de que sua resposta remete a consciência e à culpa como instrumentos que religam a pulsão de morte, controlando impulsos destrutivos por meio de uma internalização, encontrando o ponto culminante numa auto-dilacerante consciência.
A diferença para o pensamento de Klein está justamente no efeito reverso de gerar impulsos de preservar uma outra vida. A culpa funciona como uma forma de preservar o laço social. “Um ato que pressupõe que uma vida não é pensável sem o outro” (pág. 70). Assim, tendo em vista que essa dependência não nos abandona a medida que envelhecemos, mas se torna ainda mais enfática a medida que novas formas se desenvolvem, “é possível dizer que a interdição contra o assassinato torna-se princípio organizador de uma sociabilidade?” (pág. 70)
Conclusão
Se imaginamos essa dependência ao nível pessoal, podemos também imaginar que somos dependentes de arranjos institucionais e econômicos? Como isso pode se articular com reflexões sobre guerra, violência política ou mesmo abandono de populações a doença ou morte?
Construindo um laço social onde todas as vidas são passíveis de luto, uma nova forma de igualdade é introduzida na compreensão da igualdade social que afeta a governança da vida econômica e institucional. A proposta de uma ética que imponha a preservação de laços conflitantes sem os quais a vida não existiria passa pela ideia de que a dependência constituiu o sujeito na medida que é essa interação que lhe da forma. Assim, lutar contra a destruição de nós envolve lutar contra destruição de que nós próprios somos capazes, uma força contra a força.
Diferentemente de uma proteção dos mais vulneráveis por uma forma de paternalismo, que acaba sempre chegando atrasado e não aborda a produção diferencial de vulnerabilidade. Pensar a vida como dolorosa desde o início, potencialmente perdível e lamentável, organizaria então o mundo para evitar essa perda e salvaguardar essa vida de dano e destruição. Se todas as vidas forem apreendidas por meio de tal imaginário igualitário, como isso mudaria a conduta dos atores no espectro político?