Texto de autoria de Amanda Antunes (PPGD – UERJ)
“O que o futuro traria, somente os céus sabiam. A mudança era incessante, a mudança talvez não cessasse nunca. Altas muralhas de pensamentos, hábitos que tinham parecido duráveis como pedras, caíam como sombras ao toque de um outro espírito e deixavam o céu desnudo, com estrelas brilhando.”[1]
O trecho inicial do texto foi extraído do romance Orlando, escrito por Virginia Woolf em 1928. Virginia nasceu em Londres em 1882. Sua vida foi cedo marcada pelo luto, primeiro de sua mãe em 1895 e depois de seu pai em 1904. Ambos os eventos desencadearam crises depressivas que possivelmente formaram a personalidade da autora descrita como introspectiva e melancólica.
Ao escrever Orlando, Virginia pretendia realizar uma biografia dedicada a Vita Sackeville-West, com quem teve um envolvimento amoroso e uma amizade que perdurou por toda a vida. Vita, diferente de Virginia, costuma ser descrita como detentora de uma personalidade exuberante, extrovertida, que em muitos pontos também se mostra antagônico a Orlando.
O principal termo descritivo literário associado à obra de Virgínia é o fluxo de consciência. De forma simplificada, o fluxo de consciência é uma técnica literária utilizada para transmitir o processo de pensamento de uma personagem, de modo que as suas percepções externas são imbrincadas com impressões pessoais, reflexões e associações.
Por guardar linearidade temporal e marcar com mais clareza a passagem do tempo, Orlando perde muito espaço para Mrs. Dalloway quando se fala em fluxo de consciência na obra de Virginia. É nesta última obra que Virginia entrelaça as vivências e reflexões de Clarissa e demais personagens de forma tão aparentemente caótica, que por vezes perturba o leitor com tantos movimentos dialógicos.
Entretanto, o estilo de Virginia se faz marcante também em Orlando. Aqui, o fluxo de forma ampla está presente desde a formação da personagem principal, um movimento constante entre Vita e Virginia, entre duas personalidades distintas que têm no fluir da narrativa de Orlando o encontro e o movimento de suas histórias.
Vale destacar que a multiplicidade de “eus” em Orlando [a personagem], é expressamente apontada por Virginia:
“[…] ainda assim o Orlando de que ela precisa pode não vir; esses eus de que somos construídos, sobrepostos um ao outro como pratos empilhados na mão de um garçom, têm ligações em outros lugares, simpatias, pequenos códigos e direitos próprios, chamem o que quiserem (pois muitas dessas coisas não têm nome), de forma que um só virá se estiver chovendo, outro se for num quarto com cortinas verdes, outro quando a Sra. Jones não estiver, outro se puder prometer um copo de vinho, e assim por diante; pois cada pessoa pode multiplicar a partir da própria experiência as diferentes condições impostas pelos seus diferentes eus – e algumas são tão ridículas que não podem ser expressas.”[1]
É nesse sentido que se reconhece presente em Orlando a estrutura moderna de Virginia que transita entre o real fixo, seus movimentos internos e projeções reais e fantasiosas “[…] tem estrutura narrativa inovadora pelo fato de o foco de interesse recair mais sobre a identidade fluida do protagonista e suas percepções, por vezes fantasiosas, do que sobre as situações apresentadas.”[2]
O livro é fortemente marcado pela noção de movimento, mudança de locais, de época, de experiências e inclusive do sexo biológico. Esses recursos reforçam o aspecto de movimento psicológico, pensamentos internos, de modo que se conjugam o fluir pessoal da mente de Orlando com o fluir do mundo, da história, o que entendo ser bem ilustrado no trecho apresentado no início deste ensaio.
Sobre o roteiro do livro, a narrativa da vida de Orlando começa aos seus 16 anos, no final do século XVI e termina no ano de 1928, época em que o herói/heroína se identifica como mulher. Sobre a trajetória, resume-se:
“O comportamento do herói/heroína se altera com o passar dos séculos – Orlando é masculino, violento nos tempos de Elizabeth I e Jaime I, quando conhece Sasha; torna-se pensativo e mórbido, no século XVII; vai para Constantinopla como embaixador, casa-se com uma dançarina, Rosina Pepita, e muda de sexo; retorna à Inglaterra no século XVIII, participa de chás e saraus literários e cerca-se de poetas como Pope. No século XIX, em pleno apogeu como mulher, “cora”, usa saias de criolina, apaixona-se e casa-se com Shelmerdine. E, por fim, no século XX, nasce seu filho; o livro termina em 11 de outubro de 1928. ”[3]
Além da característica (auto?) biográfica da obra, deve ser destacada a prosa impressionista de Virginia, estando presentes no livro descrições de cunho pictórico, como quando narra a Grande Geada, no primeiro capítulo e há também um jogo de cores por todo o texto. São imagens, metáforas, alusões, com aproveitamento da sonoridade das palavras e o ritmo da linguagem, que evidenciam a capacidade de pintar com as palavras, característico impressionismo.[4]
Mas retomo que é sobretudo na figura da personagem Orlando e suas transições que o fluxo amplo se mostra na narrativa: “É através dessa experimentação que processos de subjetivação se intensificam e apontam para a discussão de um novo conceito de sujeito que se afasta de dicotomias de gêneros (masculino e feminino), para uma visão mais plural e híbrida […].”[5]
Nesse sentido, se conclui estar sendo sinalizada uma visão mais profunda e menos estanque da sexualidade humana, desconstruindo parâmetros sociais e do que surge, consequentemente, um rompimento com padrões preestabelecidos de escrita em que geralmente categorias narrativas são empregadas de forma bem definidas, totalmente prontas.[6]
Em contraponto ao exemplo literário, analisa-se o filme Orlando, lançado em 1992 com a direção de Sally Potter e atuação de Tilda Swinton como a personagem principal. Contudo, não se trata de uma mera transposição da obra das páginas para telas. Orlando certamente coloca desafios narrativos para manter a atmosfera fluida e permeada pelo aspecto psicológico da narrativa de Virginia. Nesse sentido, entende-se que o filme explorou outras dimensões e recursos narrativos, conforme expostos abaixo.
O filme é desde a primeira cena apresentado como seccionado em épocas e temas, marcando o traço de linearidade temporal presente no romance: 1600 Death – morte; 1610 Love – amor; 1650- Poetry – poesia; 1700 – Politics – política; 1750- Society – sociedade; 1850- Sex – sexo; Birth – nascimento. Assim, o filme opta por uma segmentação em blocos narrativos, utilizando a pontuação como forma de subdividir os blocos, o que tem como resultado um maior direcionamento do espectador para as questões que serão abordadas no plano principal em cada momento.8
Outra estratégia narrativa adotada pelo filme foi o uso do close-up, em que já na primeira cena Orlando se apresenta para o espectador por meio da narração em voice- over. Na cena inicial, Orlando está próxima a um carvalho (referência ao livro que traz a poesia autoral de Orlando sobre um carvalho) enquanto lê informações sobre si próprio, já introduzindo informações importantes da subjetividade da personagem e seu contexto social.9
A leitura de Orlando é interrompida e, pela primeira vez, é utilizado no filme o recurso da “quebra da 4ª parede” para trazer a personagem principal para mais próximo do espectador, como se no olhar focado na câmera fosse aberta uma janela para o interior da mente do herói/heroína ao mesmo tempo que o espectador é interpelado e puxado para a narrativa. Partindo do aspecto psicológico do romance escrito por Woolf, é um recurso interessante para explorar a proximidade com os pensamentos de Orlando.
A fala direta entre Orlando e o espectador se dá em momento cruciais e de transformação nos filmes. Se no livro contamos com o narrador para determinar que sejam soadas as trombetas da verdade, anunciando que a partir daquele momento Orlando era mulher, no filme temos a personagem observando seu corpo nu diante do espelho e alertando que se tratava exatamente da “[…] mesma pessoa. Nenhuma diferença. Apenas um sexo diferente.”10
Nesse ponto, acerca do desejo da diretora, destaco:
“[…]a diretora buscou, através da utilização da técnica cinematográfica, que implica numa maior aproximação do personagem com o público, ressaltar sutilezas do texto de partida, no sentido de causar no espectador uma reação de estimular uma postura desafiadora de leitura do texto, como acontece com o leitor ao se deparar com o texto de Woolf.”11
A passagem física de Orlando homem para Orlando mulher é marcada por vezes com forte ironia no livro, o que é bem encenado no filme diante das absurdas vestimentas e limitações que passam a cercar a personagem após sua transformação. As expressões de choque, exasperação e incompreensão de Tilda, auxiliam o espectador a lidar com as limitações conferidas às mulheres em tom semelhante ao utilizado pela escritora. O filme por vezes brinca com as caracterizações, cores, e atuações para criticar os estereótipos de feminino e masculino e tornar a fronteira entre os sexos e gêneros algo diluído e confuso – como vemos logo na segunda cena do filme, em que a rainha Elizabeth é interpretada por um homem, fato a que todos os personagens são indiferentes.
A esfera de confusão e nebulosidade é também utilizada como recurso para marcar as passagens do tempo cronológico e climático ao longo do filme. Além dos sonos prolongados de Orlando que culminam em mudanças de ambiente e época, a névoa aparece como recurso nas cenas de transição e confusão, seja ela como um evento climático ou alegoria da fumaça de um trem que passa em direção ao futuro. A marcação do tempo cronológico é também auxiliada pela mudança de estações climáticas, sendo perceptível a alteração temporal e nas paletas de cores que marcam primavera, verão, outono e inverno.
Com a apresentação das diferentes formas narrativas de Orlando, foram realçados pontos de contato e afastamento entre o romance e o filme. Ambas as formas apresentam particularidades em sua composição com marcas próprias do meio de linguagem empregado. Contudo, a transposição do livro para o cinema desempenhou o papel de transmitir as sensações que Virginia imprimiu em seu livro, ampliando a experiência da obra da autora no fluir junto com a personagem e com os temas que pretendia apresentar em seu tom particular de crítica feminista e social.
Amanda Antunes é mestranda em Teoria e Filosofia do Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Cursou pós-graduação lato sensu – Curso de especialização em Direito Público e Privado pela Escola de Magistratura do Estado do Rio de Janeiro – EMERJ (2019). Possui graduação em Direito pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – UNIRIO (2016). Possui experiência com pesquisa na graduação entre 2013 e 2015, estudando os direitos fundamentais sociais nas relações contratuais privadas (Bolsista IC/Unirio). Currículo completo aqui.
Referências:
[1] WOOLF, Virginia. Orlando. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2018. p. 106
[2] Ibidem, p. 18. Comento ainda que penso aqui na ideia de fluxo de consciência empregando um “fluxo” amplo, para além de estilo literário, o fluxo no modernismo era marcado por uma ideia ampla de movimentação e evolução que vem desde a biologia com Darwin, para a teorização em William James e a expressão literária vista por exemplo em Joyce e Woolf.
[3] SILVA, Carlos Augusto Viana da. Orlando e Mrs. Dalloway e a reconfiguração da narrativa de Virginia Woolf na tela. p. 7. Disponível em: file:///C:/Users/amand/Downloads/3932-Texto%20do%20artigo-10415-1-10-20170829%20(1).pdf. Acesso em: 23 de maio de 2021.
[4] ALVES, Laura. Apresentação Virginia e Orlando in Orlando. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2018. p. 7.
[5] Ibidem.
[6] SILVA. Ibidem, p. 8.
[7] Ibidem.
[8] Ibidem, p. 12.
[9] Ibidem.
[10] Fala extraída do filme Orlando, 1992, Sally Potter.
[11] SILVA. Ibidem, p. 14.