Texto de Alexandre de Azevedo Soares, Mestrando em Teoria e Filosofia do Direito (PPGD UERJ)
No conto Um Relatório para uma Academia, escrito em 1917 por Franz Kafka, o narrador personagem relata a sua transformação em um ex-macaco.
Franz Kafka, nascido em Praga, na atual República Tcheca, é considerado um dos escritores mais influentes do século XX. A Metamorfose e O Processo são alguns de seus escritos mais famosos os quais abordam temas como, por exemplo, a alienação e a brutalidade do poder. Aqui no Brasil, no início de 2019, ficou muito popularizado quando o seu nome foi “imprecionantemente” confundido pelo então Ministro da Educação com o de um alimento preparado com carne moída: a cafta.
É possível ler o conto Um Relatório para uma Academia na rede mundial de computadores, mas também na edição de 1999, da Companhia das Letras, de Um médico rural, uma coletânea que o próprio Chico1 Kafka publicou na sua curta e fecunda vida de 41 anos. É possível também assistir o ator Kimura Schetino dirigido pelo diretor Eid Ribeiro, na adaptação para o teatro desse conto, no YouTube, gravada na Academia Mineira de Letras2.
Qual é o resumo do conto? Um símio é capturado por uma empresa que trabalha com isso: pega bichos para explorá-los em zoológicos ou em circos. O macaco desenvolve a consciência de sua prisão e descobre que, se imitar os humanos, ele pode sair daquela situação claustrofóbica para uma mais confortável. A forma do conto é um relatório que o ex-macaco faz perante uma academia científica acerca de sua evolução.
De início, três ideias se explicitam, a saber: o narrador em primeira pessoa é um híbrido, o público-alvo ficcional é uma audiência qualificada pela intelectualidade (pelos valores do espírito) e o meio da comunicação nos remete a uma expressão formal, clara e objetiva de fatos e observações. Tudo isso somado nos apresenta, com bastante ironia, uma perspectiva melancólica3 e solitária do existir humano, e uma estratégia de luta contra a opressão. Ao menos é isso que eu pretendo explorar no conto com este pequeno texto reflexivo, uma das inúmeras possibilidades interpretativas.
Eu vou escrever aqui sobre a primeira dessas ideias: a condição compósita, mestiça, de Pedro Vermelho, o herói narrador desse conto. A escolha dessa chave de interpretação é justificada porque, dialogando com Kafka, ele me fez refletir sobre a mobilização dos afetos como meio de possibilitar o pensar de forma diferente do que se espera: de ser autêntico no sincretismo, mesmo que coagido à integração sob uma estrutura homogeneizadora e autoritária. Este sentimento de coação é a condição, hoje, na sociedade capitalista, de inúmeras pessoas. É nessa interseção possível entre literatura e filosofia política que eu pretendo me situar.
Pedro Vermelho, o narrador personagem, não é mais um macaco, mas ele não se tornou humano. Ele é um ex-macaco, um híbrido, uma singularidade marcada por uma heterogeneidade. É uma representação. Como as entidades xapiriri dos Yanomami, é um elo que torna possível a comunicação entre as perspectivas humanas e não-humanas4. Como no perspectivismo ameríndio, é uma pessoa.
Pessoa e personagem herdam da origem etimológica sentidos que vão da ampliação da voz na máscara usada pelos atores gregos à expressão de uma subjetividade singular. Os jurisconsultos romanos pragmáticos atribuíram existência civil e direitos ao conceito. O Cristianismo deu à pessoa uma alma responsável por seus atos. Kant, no prelúdio dos tempos modernos, operou a cisão entre pessoas e coisas; as pessoas são fins em si mesmas, ao passo que as coisas são meios.
Pedro Vermelho nos faz refletir sobre os modos de existir e de se relacionar humanos sob a perspectiva de um ex-macaco. Ele sequer se recorda de sua antiga condição: tem lembrança de sua captura quando era mais um do bando, e da escuridão opressiva do seu caixote, uma prisão improvisada. A angústia do seu aprisionamento é o motor da sua transformação em um ex-macaco.
A inserção dessa subjetividade na dinâmica das relações com os humanos se dá pela violência. Pedro Vermelho é alvejado de raspão no rosto e gravemente no quadril; é capturado pela pela “firma Hagenbeck”5. É por um ato de brutalidade, por sua marca, que ele é identificado pela sociedade humana: a referência à cicatriz vermelha no rosto lhe dá o nome. Aprisionado, desterritorializado, mas lúcido de suas concretas possibilidades e limites, é motivado pela busca de uma saída e não pelo “grande sentimento de liberdade por todos os lados”.
O ex-macaco não sente raiva dos seus captores porque não percebe neles traços de crueldade, mas de curiosidade e, até, de afeto. Ao se referir a um dos seus captores que mais frequentemente o visitava, muitas vezes sozinho, Pedro matuta:
“Ele não me compreendia, queria solucionar o enigma do meu ser.”
O ex-macaco descobre que a saída é pela imitação dos gestos de seus captores. Essa emulação era desejada pelos humanos. Pedro Vermelho vai percebendo a satisfação dos seus captores em vê-lo copiar seus gestos, mesmo que o ex-macaco não apreenda o sentido dos gestos para levar à boca o líquido cujo odor e aroma lhe são desagradáveis ou os gestos de preparo e manuseio de um cachimbo. Todavia, repetia, repetia o que os humanos faziam, porque aí estava a sua saída.
A perspectiva do ex-macaco é a de quem teve rompida a sua ligação orgânica com um modo
de existir original – e já esquecido. Um paraíso perdido não mais acessível… e (talvez) não mais desejado. Por que houve uma transformação?… Não sei. O que você acha? Parece-me uma perspectiva de voluntário alheamento de si, para permitir uma solução imediata a uma condição de desamparo, diante da impotência de adoção de qualquer outra estratégia. Parece-me uma perspectiva desesperançosa e não emancipadora que se depreende das duas possibilidades que lhe estavam disponíveis: “jardim zoológico ou teatro de variedades”.
“All the world’s a stage” e, no seu delírio etílico, a persona de Pedro Vermelho fez soar o brado humano, demasiadamente humano… para espanto dos seus carcereiros! Ele fez a sua escolha.
“Ouçam, ele fala!”
Na suposição da impossibilidade de escolher a liberdade, o perspectivismo do ex-macaco adotou a saída da emulação de um modo de ser humano para sair do enjaulamento.
É uma saída solitária.
Pedro Vermelho não se queixa, nem se sente satisfeito com sua “evolução e sua meta até agora”. Na perspectiva desse ex-macaco é um não-humano integrado à sociedade dos banquetes, das sociedades científicas e das reuniões agradáveis. Na perspectiva dessa subjetividade transformada não há o desejo de reconhecimento (“Não quero nenhum julgamento dos homens…”), mas uma ambição de esclarecimento (“… quero apenas difundir conhecimentos.”). Embora integrado exteriormente, guarda dentro de si a potência angustiante do inconformismo.
A subjetividade que se exprime no Um Relatório para uma Academia com desenvoltura e
elegância é a de uma consciência que aprendeu a emular o que agrada a seus opressores. No entanto, não é um alienado, pois ele não deixa de reconhecer no olhar da pequena chimpanzé semiamestrada “a loucura do perturbado animal amestrado”, olhar com o qual o ex-macaco ainda se identifica e não consegue suportar. Ele, enfim, se reconhece em fuga, na sua saída, mas não livre.
A perspectiva do ex-macaco me faz pensar a perspectiva do oprimido que foi arrancado da sua relação orgânica com a vida, que não compreende as razões da opressão, e que escolhe deliberadamente uma estratégia de alheamento como meio de lidar, no nível da sobrevivência, com a angústia, o imobilismo e a escuridão do aprisionamento a que foi submetido de forma violenta. Gostaria de pensar que talvez essa perspectiva solitária seja a de muitos, sobretudo aqui no Brasil, que, no cotidiano violento e opressivo desta sociedade plutocrática e reacionária à democracia social, vai buscando suas saídas, e, nessas saídas, estratégias de emponderamento e reação. Estratégias de ressignificação e re-existência.
Franz Kafka faz pensar nos movimentos insurrecionais que estão em marcha, sobretudo após 1848, no mundo inteiro. Eles irrompem como exceções em contextos em que as pessoas vivem suas vidas sem se queixar, mas sem estarem satisfeitas. Personagens violentadas e desterritorializadas, narradoras de suas próprias vidas, que buscam uma saída.
Quantos de nós não estaríamos também forjando em nossas vidas cotidianas uma perspectiva de ex-algo? Saindo de nós, em um movimento para fora de nós, em direção aos outros, um movimento criativo e inventivo que nos transforma internamente. E que transforma também todo o mundo ao nosso redor. Quantos de nós também não estaríamos em fuga, em nossas saídas cotidianas, e, assim, experimentando com prazer as possibilidades concretas que essas saídas nos oferecem em oposição a uma liberdade idealizada sempre desejada, mas cuja realização pode ser imobilizadora ou fatal?
No final de Um Relatório para uma Academia, o personagem narrador que se transformou diz, ironicamente, que seu esforço é o que foi possível: “Seja como for, no conjunto eu alcanço o que queria alcançar. Não se diga que o esforço não valeu a pena.”
Fazer valer a pena o esforço. É uma boa saída…
1 Franz, que significa francês em alemão, tem relação com Francis, variante inglesa de Francisca, do latim Franciscus. (https://www.dicionariodenomesproprios.com.br/francis/)
2 https://www.youtube.com/watch?v=azSptSCqK2k
3 Deleuze e Guattari escrevem: “Há o riso de Kafka, riso muito alegre, que se compreende tão mal, pelas mesmas razões. Pelas mesmas razões estúpidas pretendeu-se ver na literatura de Kafka um refúgio distante da vida, e também uma angústia, a marca de uma impotência e de uma culpa, o signo de uma tragédia interior triste. Dois princípios apenas para tomar partido de Kafka: é um autor que ri, profundamente alegre, de uma alegria de viver, apesar e com suas declarações de clown, que ele estende como uma armadilha ou como um circo. De uma ponta a outra, é um autor político, adivinho do mundo futuro, porque tem como dois pólos que ele vai saber unificar em um agenciamento inteiramente novo: longe de ser escritor retirado em seu quarto, este lhe serve a um duplo fluxo, o de um burocrata de grande futuro, ramificado nos agenciamentos reais que se estão realizando; e o de um nômade fugindo do modo mais atual, que se ramifica no socialismo, no anarquismo, nos movimentos sociais.” (DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. Kafka: por uma literatura menor. Rio de Janeiro, Imago Editora Ltda., 1977. p. 62 e 63)
4 “Se não viramos outro com o pó de yâkoana, só podemos viver na ignorância. Passamos o tempo só comendo,
rindo, copulando, falando à toa e dormindo sem sonhar muito. Sem o poder da yâkoana as pessoas não se
perguntam sobre as coisas do primeiro tempo. Nunca pensa: ‘Quem eram mesmo nossos ancestrais que viraram
animais? Como foi que o céu caiu antigamente? De que modo Omama criou a floresta? O que dizem mesmo os
cantos e as palavras dos xapiri?’. Ao contrário, quando bebemos o pó de yâkoana como Omama nos ensinou a
fazer, nossos pensamentos nunca ficam ocos. Podem crescer, caminhar e se multiplicar ao longe, em todas as
direções. Para nós, é esse o verdadeiro modo de conseguir sabedoria.” (KOPENAWA, Davi e BRUCE, Albert. A
Queda do Céu: Palavras de um Xamã Yanomami. Tradução: Beatriz Perrone-Moisés. São Paulo, Companhia das
Letras, 2015. p.510)
5 Carl Hgenbeck era comerciante alemão de animais selvagens e foi o criador do zoológico moderno com animais em
cercados sem barras para emular de forma mais próxima o habitat natural deles. https://en.wikipedia.org/wiki/Carl_Hagenbeck)
Referências:
DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. Kafka: Por uma Literatura Menor. Rio de Janeiro, Imago Editora Ltda., 1977.
KAFKA, Franz. Um Médico Rural: Pequenas Narrativas. Tradução do alemão e posfácio: Modesto Carone. 3 ed. São Paulo, Editora Brasiliense, 1994.
KOPENAWA, Davi e BRUCE, Albert. A Queda do Céu: Palavras de um Xamã Yanomami. Tradução: Beatriz Perrone-Moisés. São Paulo, Companhia das Letras, 2015.
Sua análise mostra Kafka, um mestre inconfundível em seu estilo de prosa, cujo texto fala sobre a liberdade e a submissão.
O conto Um Relatório para uma Academia, também me faz pensar na perspectiva do oprimido que não compreende as razões de sua opressão, mas fica tentando entender. Sobretudo do oprimido brasileiro, que leva uma vida de incertezas e tenta transformá-la através do trabalho (quando o tem). Buscando, sempre, uma saída para se ajustar a funcionalidade dessa sociedade capitalista.
Arrisco dizer que: pessoas um pouco mais esclarecidas e oprimidas, buscam uma saída para romper com o sofrimento. Mas aquelas sem esclarecimento algum, oprimidas e vivendo na miserabilidade, em sua maioria, se aproximam de quem lhes faz sofrer, achando que seja a única saída.