Este ensaio é um diálogo com o livro Avian Reservoirs: virus hunters & birdwatchers in Chinese sentinel posts (2020), do antropólogo Frédéric Keck. Em sua inovadora pesquisa, Keck observa que o enfrentamento às epidemias acelera a difusão de dispositivos de caça, antecipação e sentinela. Diante das novas condições, como poderíamos pensar o funcionamento das democracias? No Brasil, estaríamos vivendo uma batalha das sentinelas?
Introdução: Kafka e a Justiça como caça No capítulo VII de O processo, segundo a divisão proposta por Max Brod, Josef K é introduzido ao pintor Titorelli, cuja principal fonte de renda é fazer retratos de juízes, frequentemente sentados em uma espécie de poltrona-trono de onde lançam olhares ameaçadores, embora, segundo o pintor, a encenação não passasse de pura ficção autorizada pelo Tribunal (Kafka, 2005). Titorelli, segundo a descrição do personagem “industrial”, não passa de mais um homem de negócios, que não somente trafica telas e pinturas (aliás, quase sempre repetidas), como transmite informações sobre os processos, os juízes e as últimas novidades do Tribunal. Sua função transbordante de “tagarela” ou de “mentiroso” não é diferente da que encontramos em outros personagens do romance. Na leitura de Deleuze e Guattari, o importante é manter os fluxos da justiça como pura imanência do desejo, como um agenciamento que faz coexistir “maquinistas, peças, matérias e pessoal maquinado, carrascos e vítimas, poderosos e inaptos (...)” (Deleuze; Guattari, 2003, p. 101). Como se sabe, é no mesmo capítulo que Titorelli afirma desconhecer qualquer exemplo de absolvição real e de reconhecimento de inocência (as crianças já estão deformadas) e apresenta duas determinações possíveis para esses fluxos: a absolvição aparente e o processo arrastado. Trata-se de dois tipos de burocracias intermináveis que demandam esforços diferentes. No primeiro caso, um esforço concentrado e temporário (vertical), que desencadeia um vai e vem entre instâncias inferiores e superiores do Tribunal; no segundo, um esforço muito menor, mas duradouro (horizontal), que faz girar o círculo interminável das instâncias inferiores. Na síntese proposta pelos comentadores franceses, a burocracia kafkiana é o ponto de encontro entre uma burocracia arcaica e outra moderna: “escalonamento da hierarquia celeste e contiguidade dos gabinetes quase subterrâneos” (idem, p. 128). No entanto, talvez para além das duas modalidades de poder prenunciadas por Kafka (soberania e controle) é possível que exista, no mesmo capítulo de O processo, uma terceira forma ainda não examinada com atenção. Quando K entre nos aposentos de Titorelli, o pintor está trabalhando o retrato de um juiz em seu trono imponente, o que dá a oportunidade para K iniciar a conhecida conversa sobre os tipos de processo (ou burocracias). Mas, antes disso, K decide examinar melhor o retrato, olhando-o de perto, tentando identificar o que seria a grande figura que ocupa o encosto do assento. “É a Justiça”, diz Titorelli. Só que, por encomenda do Tribunal, ela é representada de forma inusitada, com asas nos calcanhares e em plena corrida. Segundo essa fórmula, a Justiça (Diké) e a deusa da Vitória (Kiné) devem ser representadas juntas, com a balança do equilíbrio e a espada misturando-se às asas da força e da velocidade. Ensaiando um sorriso no rosto, K comenta que a vinculação não é boa. Ora, a Justiça deveria ficar em repouso. Se a balança oscila, perdendo o equilíbrio, conclui-se que um julgamento justo não é mais possível (Kafka, 2005, p.146). Eu me submeto a meu cliente”, diz o pintor. Titorelli retoma o trabalho e, pegando um lápis, desenha uma espécie de sombra avermelhada junto à cabeça do juiz, que se esvai na forma de raios em direção à borda do quadro. Esse jogo de sombras compõe, no entorno da cabeça, algo como um adorno ou signo de alta distinção. Mas, em torno da figura da Justiça, alguns rastros de claridade induzem uma transformação: a figura avança de maneira especial, nessa claridade, não mais se assemelhando com as deusas da Justiça ou da Vitória, mas sim com a deusa da Caça. No mesmo movimento, ambos estão cada vez mais atraídos pela pintura. Titorelli, totalmente inclinado em direção ao quadro, chega a negligenciar K. A cena só em rompida quando K, lembrando-se de seu processo, busca, de forma abrupta e impaciente, informações vindas do pintor. Surge uma nova questão kafkiana: o que acontece quando a Justiça, já dotada de força e velocidade, se transmuta em deusa da Caça? O que acontece quando esta composição não usual – balança, espada, pés alados – começa a se mover em direção a uma presa? Uma sombra vermelha envolve o juiz, enquanto as luzes abrem caminho para a caça. O que Kafka quis iluminar (fazer-ver) como esse jogo de claro-escuro? Estamos diante de outro problema, ou de outras “forças diabólicas” (Deleuze; Guattari, 2003, p. 140) que não se reduzem à verticalidade descontínua do arcaico e à horizontalidade insistente do controle? O objetivo deste ensaio consiste em indagar se, no mundo pós-pandêmico que se avizinha, existiria uma tendência interna à biopolítica que aponta para as práticas de caça, para além do binômio soberania/controle, como teria intuído Kafka. Esta hipótese me veio à tona através da leitura do livro Avian Reservoirs: virus hunters & birdwatchers in Chinese sentinel posts (2020), do antropólogo Frédéric Keck. Neste livro, Keck desenvolve progressivos avanços em uma linha de pesquisa denominada de Antropologia das Epidemias (2019), cujos resultados podem deslocar, de forma instigante, o conceito de biopolítica. Poder Cinegético e Epidemias Em sua conhecida síntese sobre as características do poder pastoral, fundamental para a compreensão do conceito de biopolítica, Foucault afirma que essa forma de poder é orientada para a salvação individual e coletiva (por oposição ao poder político), é benevolente (por oposição ao princípio da soberania), é individualizante (por oposição ao poder jurídico), é coextensiva à vida (constituindo o seu próprio prolongamento) e está ligada à produção de uma verdade intrínseca ao sujeito. Dialogando com essa definição, o filósofo Grégoire Chamayou, no livro Les chasses à l’homme (2010), argumenta que o poder pastoral não se opõe, de início, ao poder soberano, mas a outra forma de poder, por vezes negligenciada nas genealogias políticas. Trata-se de um poder cinegético, cuja função não diz respeito ao governo benevolente de um rebanho, mas à constituição de um coletivo através da caça e da captura violenta. Nas narrativas talmúdicas, enquanto Abraão aparece como o rei pastor, é em Ninrode que se reúnem o poder de comando e a prática da caça. Para se torna rei, Ninrode desobedece a deus e decide reunir os homens através da força, tornando-se conhecido como o Supremo Caçador. Assim, enquanto Foucault contrapõe o poder pastoral ao modelo político da cidade grega, a oposição entre pastor (cuidado) e caçador (captura) já estava presente na própria tradição hebraica, trazendo os fios de outra genealogia. Para Chamayou, ao trair o legado do supremo pastor (deus), Ninrode funda o primeiro poder verdadeiramente terrestre e imanente, despido de características transcendentes, constituindo mais uma física que uma teologia do poder. O poder cinegético não é, assim, exercido sobre uma multiplicidade em movimento (rebanho), através de uma constante individualização (ovelha), mas sobre presas em permanente fuga e em cativos sempre prontos para empreender uma fuga (Chamayou, 2012, Cap. II). O que aconteceria se esta forma de poder - aliás, tão presente na colonização da América - se transformasse em uma tendência da biopolítica contemporânea? Estaríamos assistindo a uma nova relação entre poder pastoral e poder cinegético? Desde a década de 1990, lembra Frédéric Keck, a imagem do virologista como um “caçador de vírus” ganha destaque no meio epidemiológico, especialmente a partir da difusão do vírus do Ebola e do HIV. Segundo esse raciocínio, não estamos mais somente no mundo de Pasteur, Koch ou Oswaldo Cruz, que comandaram a “guerra biológica” criando novos sistemas de defesa (imunização) e de ataque (esterilização) nos ambientes urbanos e rurais. A nova figura que emerge – pensemos no virologista americano Nathan Wolfe - surge “vestida” para outro tipo de guerra: abandona o laboratório para se embrenhar nas florestas tropicais da África, do sudeste asiático ou da América do Sul, coletando mostras de sangue nos animais, visitando pequenos mercados de carne e traçando possíveis rotas de transmissibilidade. Wolfe é, frequentemente, descrito como uma espécie de “Indiana Jones” da atualidade, se deixando fotografar no meio da mata em interação com os caçadores das comunidades tradicionais. Porém, a semelhança não seria tão literal: após sua inserção na floresta, ele volta para o Vale do Silício e comanda uma equipe de cientistas da computação, analistas de sistemas e biólogos especializados (Keck, cap. II). Assim, ao contrário da figura clássica do gestor de saúde, responsável por medidas de prevenção baseadas na análise de curvas de casos em uma população, modelo histórico que Foucault encontra no combate à varíola, o caçador de vírus se lança nas ligações íntimas existentes entre as espécies, buscando compreender a transmissibilidade do ponto de vista do vírus e dos tipos de relação existentes entre as diferentes espécies. A inflexão do pastoral ao cinegético, realizada no interior da biopolítica contemporânea, supõe, além disso, novas técnicas e formas sociais. Nas pesquisas sobre biossegurança, Andrew Lakoff já denominava de “instrumentos de sentinela” as técnicas de preparo desenvolvidas no enfrentamento de um possível desastre securitário (2007). Frédéric Keck parte da mesma terminologia para referir-se às formas de sinalização e comunicação presentes em vários níveis ontológicos: (i) o papel das células sentinelas no corpo humano; (ii) dos animais não imunizados nos grandes reservatórios da cadeia alimentícia; (iii) dos países ou cidades eleitos como um entreposto-sentinela, em especial Hong Kong; (iv) dos movimentos sociais, ecológicos, políticos e culturais e, obviamente, os instrumentos criados pelos “caçadores de vírus” em articulação com os órgãos locais e globais de governança da saúde pública. O funcionamento dos instrumentos de sentinelas inseridos nos vários limiares entre humanos e não humanos pressupõe, por fim, uma mudança na própria cosmovisão desenvolvida no mundo ocidental. A natureza não é mais uma res extensa que articula as espécies e um meio ambiente específico, mas uma fonte desconhecida e inesgotável de intromissões interespécies, intercâmbios biológicos, interações inesperadas e mutações virais que fermentam sempre novas e possíveis ameaças. Essas interações produzem sinais ou informações que devem alimentar uma base de monitoramento organizada nos moldes da gestão de fluxos do big data ou em projetos ligados à chamada big Science. As formas de pensar o social também se transformam, seguindo o mesmo movimento. A sociedade não é mais vista apenas como um meio natural objeto de intervenção técnico-legal, segundo o modelo da estatística e do cálculo de probabilidades (prevenção), ou como uma cultura específica na qual os indivíduos compartilhariam normas morais e sociais, sendo capazes de participar de políticas de imunização e de cuidado (precaução). O socius é visto como um espaço de trocas semióticas que ocorrem em níveis ontológicos e escalas diversas, a partir das quais se torna possível uma vigilância e uma captura permanente de novos sinais antecipadores de algum evento relevante (antecipação). Para que essa captura ocorra, portanto, é preciso desenvolver inúmeras técnicas de preparo que possam antecipar a ocorrência do evento. A difusão de sentinelas nos diferentes limiares ontológicos (das células do organismo aos fluxos globais, passando por aplicativos nos celulares de cada indivíduo) cria um tipo novo de vigilância, não mais baseada no modelo estático-binário do panóptico disciplinar, mas no rastreamento ativo e multiescalar derivado de uma situação de comunicação entre caçador e presa. Sentinelas Democráticos Tudo isso nos levaria a acreditar que uma sociedade da vigilância e do controle absoluto é o resultado inevitável da nova biopolítica. No entanto, os dispositivos de caça e de sentinela podem ser vistos, também, a contrapelo. Keck, em seus comentários sobre a aliança entre virologistas, observadores de pássaros, movimentos ecológicos e protestos de rua, em Hong Kong, utiliza a expressão “sentinelas democráticos” para se referir a esses engajamentos (Keck, Cap. IV). Com efeito, entre 1999 e 2001, a associação de observadores de pássaros, em interlocução com movimentos ambientais locais e internacionais, consegue garantir a preservação do território de Long Valley, em detrimento da construção de uma linha ferroviária no local. Entre 2004 e 2008, inicia-se uma nova luta contra os fechamentos correntes do Parque Mai Po, apontado pelas autoridades como um foco da influenza de tipo H5N1. Uma aliança com os virologistas e seus métodos de rastreamento garantiu que ficasse comprovada a origem da transmissão nos mercados de carnes e não no parque, possibilitando a sua abertura definitiva (idem). Em 2003, após a epidemia de SARS iniciada na China continental, cerca de 500 mil pessoas protestam no Victoria Park contra mudanças legais que iam fortalecer medidas securitárias e reduzir as liberdades civis, além da falta de transparência nas informações que marcou a gestão da epidemia. Essas manifestações massivas acabam se repetindo, em 2014, contra as tentativas de controle eleitoral realizadas pelo Partido Comunista Chinês (a chamada “revolta dos guarda-chuvas”) e, a partir de 2019, contra o projeto de lei de extradição que ameaça a autonomia da região (idem). A tomada do ponto de vista dos pássaros, em suas rotas transnacionais e sua concentração territorial, e dos vírus da gripe aviária, em sua transmissão interespécies, associou-se a movimentos pela democracia e pelo direito à informação. Em uma constante associação entre humanos e não humanos, um fio perspectivista acaba relacionando o movimento pendular dos pássaros, a preservação dos parques e unidades ecológicas, os protestos de rua contra o aumento do autoritarismo estatal e os vários dispositivos tecnopolíticos que são criados para difundir no corpo social funções de sentinelas da democracia. Caça e Diferença: a antropofagia brasileira No Brasil, durante todo o séc. 20, vários esforços foram realizados para valorizar a ideia de caça e de predação como elementos de resistência contra o passado colonial e contra as tentações neocoloniais sempre reatualizadas. Esses esforços podem ser sintetizados a partir de dois exemplos: a antropofagia modernista e o perspectivismo ameríndio. A publicação dos Manifestos da Poesia Pau-Brasil (1924) e Antropófago (1928), pelo escritor modernista Oswald de Andrade, inaugurou uma linhagem que verá na “devoração universal” uma prática de produção de diferença avessa tanto à reprodução acrítica da cultura europeia, como à metafísica nacionalista ou fascista à época em ascensão. Segundo o filósofo Benedito Nunes, na literatura de Oswald de Andrade, a prática da caça, do canibalismo e da “devoração antropofágica” – inspirada na cerimônia guerreira dos Tupis – é mobilizada como símbolo cruento oposto a um inimigo sempre reencarnado, cujas bases são: o aparelhamento político-religioso forjado em por nossa colonização, a sociedade patriarcal com seus modelos impositivos de conduta moral e o extermínio do indígena como condição para a prometida civilização. Em contraposição a essa herança, ligada à conquista que se inicia no ano 1500, Oswald estabelece como ato inaugural de nossa história a “deglutição” do bispo Sardinha pelos índios Caetés (1556), momento que não é de repulsa negativa ao inimigo, mas de digestão canibal do colonizador. Esse processo de incorporação do inimigo se opõe radicalmente a duas tendências que se complementam na gênese da modernidade brasileira. A primeira reconhece a força original do negro e do indígena, mas apenas para incorporá-la nos mitos de fundação do Estado. A segunda busca proteger o indígena da violência dos conflitos territoriais, mas apenas para integrá-lo ao progresso técnico e industrial. A antropofagia de Oswald de Andrade devora as duas tendências fabricando algo inteiramente novo. O mito indígena se converte em energia psíquica e coletiva inclinada à liberdade e à igualdade, estando na própria gênese da declaração de direitos do homem (“sem nós a Europa não teria sequer a sua pobre declaração de direitos”). O ideal do progresso industrial se converte na possibilidade de uma sociedade do ócio baseada na apropriação da técnica e na deglutição do civilizado pelo bárbaro (“é na América que está criado o clima do mundo lúdico e o clima do mundo técnico aberto para o futuro”). Na filosofia de Oswald, essas duas “digestões” serão sintetizadas em dois conceitos: a revolução caraíba e o bárbaro tecnicizado. No entanto, para os propósitos deste ensaio, o que interessa é perceber que a antropofagia, através do ritual de captura e deglutição da diferença, propõe uma alternativa às duas formas de poder que Oswald considerava como patriarcais e messiânicas: o poder soberano, com a sua busca por um pacto baseado em uma alma fundadora, e o poder pastoral, com a sua busca de assimilação técnica baseada na catequese e na obediência. O que deriva disso é o abandono de ideais transcendentes em favor da possibilidade de uma alteridade difícil e sempre aberta a riscos e perigos: “a devoração traz em si a iminência do perigo e produz a solidariedade social que se define em alteridade” (De Andrade, 1990, p. 159). É exatamente essa arte política aberta a riscos que o antropólogo Viveiros de Castro identifica no perspectivismo ameríndio, caracterizado pela valorização simbólica da caça e pela importância do xamanismo. Para além de uma necessidade meramente biológica, a caça, nas sociedades amazônicas analisadas pelo autor, está ligada a uma dimensão cosmológica conferida à predação animal, à subjetivação espiritual dos animais e à concepção de que o universo é povoado de perspectivas extra-humanas (Viveiros de Castro, 2002, p. 357). Para Viveiros, a ideologia dos caçadores é, sobretudo, uma ideologia dos xamãs. Isto é, a habilidade de certos indivíduos de cruzar barreiras ontológicas e corporais para adotar as perspectivas de subjetividades não humanas, assumindo um papel ativo de interlocução e diálogo transespecífico. Assim como em Oswald de Andrade, a arte política que deriva desse encontro, do intercâmbio perigoso entre diferentes pontos de vista, reclama o exercício de uma diplomacia que enxerga em cada evento uma ação, uma expressão de estados ou de predicados intencionais de algum agente (idem, pp. 358-359). A “ideologia dos caçadores” é o que permite, portanto, que os diferentes pontos de vista não sejam apropriados por um ponto de vista Superior, deixando em aberto a possibilidade de uma diplomacia sem soberanos e sem poderes unívocos. Uma batalha de sentinelas? Uma das interrogações que podem ser feitas a partir dessa reflexão é se a tradição antropofágica acompanha à virada cinegética efetivada no interior da biopolítica contemporânea. Frédéric Keck chega a comparar os atuais caçadores de vírus com os xamãs indígenas que precisam se relacionar com pontos de vista extra-humanos e ações de seres invisíveis. O Vale do Silício, extrapolando o argumento, se converteria em um imenso tambor xamânico, destinado a facilitar a comunicação com outros seres e mundos, rastreando e antecipando possíveis acontecimentos não perceptíveis para a maioria dos humanos. Isso, porém, significa dizer que os projetos transcendentes são, automaticamente, abandonados em favor de uma arte política aberta às diferentes perspectivas? A resposta, claro, é negativa. Contudo, isso não significa dizer que não existam sujeitos engajados e alianças heterodoxas capazes de realizar algumas “devorações” dos dispositivos de antecipação e vigilância contemporâneos. Não seria mera coincidência, em primeiro lugar, que uma nova “cosmovisão” relacionada à floresta amazônica esteja se formando, deslocando-se de uma representação baseada na oposição clássica “paraíso Edênico/inferno verde” para chegar à ideia da floresta como um reservatório emissor de sinais e como fonte de intercâmbios biológicos imprevisíveis. Alguns exemplos podem ser citados. Em 2015, o Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia, em parceria com o Instituto Max Planck, inaugura um observatório ambiental no interior da floresta através da construção de uma torre com altura de 325 metros (ATTO - Amazon Tall Tower Observatory). O objetivo é medir os impactos das mudanças climáticas globais através do rastreio monitoramento de uma série de variáveis ambientais. Em 2018, em outra frente, biólogos americanos publicam uma pesquisa inédita sobre pássaros que funcionam como sentinelas na Amazônia, emitindo sinais para outras espécies e incentivando alianças interespécies antes desconhecidas (Martinez et al. 2018). Na mesma linha, apesar de não contar com a tradição de Hong Kong, o circuito brasileiro de observadores de pássaros cresce de forma exponencial, associando-se a atividades de preservação do meio ambiente e colaborando com os próprios especialistas. Em abril de 2020, um grupo de cientistas brasileiros e radicados no Brasil (entre eles, um vencedor do prêmio Nobel, Philip Fearnside) publica um artigo sobre o efeito do desmatamento e da perda de biodiversidade na Amazônia, relacionando-os ao crescimento de doenças infectuosas emergentes, a exemplo da zika, dengue, chikungunya e febre amarela, indagando se o próximo coronavírus virá da floresta tropical em razão dos intercâmbios biológicos imprevisíveis (Ellwanger et al. 2020). O grupo defende que investimentos em saneamento básico, saúde pública e educação (prevenção) sejam combinados com dispositivos de sentinela do meio ambiente. A proteção da biodiversidade, nessa linha, passa a ser vista não apenas como meio de preservação ambiental, mas como forma de tornar mais complexas e seguras as trocas biológicas interespécies. Além disso, a participação da sociedade civil não é vista apenas como um direito coletivo e democrático, mas como uma maneira de difundir sentinelas sociais na floresta e nos meios urbanos (idem). A mesma inflexão pode ser notada em relação às terras indígenas, cada vez mais valorizadas como aliadas para a preservação da floresta e da biodiversidade. Um estudo, publicado recentemente, reunindo cientistas e organizações de diversos países, destaca o papel das terras indígenas como buffers contra a emissão de carbono em larga escala, impedindo o desmatamento e a perda de biodiversidade (Walker et al. 2020). Essa relação já estava sendo trabalhada com força pelos próprios povos indígenas, que passam a ocupar os fóruns internacionais sobre mudanças climáticas, em especial a partir do Acordo de Paris (2015), buscando relacionar o seu papel de sentinela ambiental com a defesa dos direitos coletivos territoriais. Num sentido ainda mais radical, na última Assembleia dos Povos Indígenas de Roraima, em 2019, os povos Ingariko, Macuxi, Wapichana, Wai Wai, Yanomami, Patamona, Sapará, Taurepang aprovaram a formação de “grupos de vigilância, proteção e monitoramento” destinados a garantir proteção territorial e ambiental. Nesse contexto, a emergência sanitária causada pela Covid-19 dificulta ainda mais um cotidiano já marcado pelo aumento do garimpo, da extração ilegal de madeira, das queimadas e da especulação sobre as terras. Nos dizeres de Davi Kopenawa (2015), as “fumaças-epidemias xawara” vêm, novamente, associadas aos “brancos comedores de terra”, numa onda de devoração que atinge a floresta, os povos indígenas e os próprios brancos. Em 02 de julho de 2020, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil já contabiliza 121 povos afetados pela Covid, com 10.341 casos confirmados e 408 mortes. Da mesma forma, a região norte do Brasil continua sofrendo com a maior taxa de letalidade em comparação com outras regiões do país, atingindo 9.631 mortes. Sem dúvida, esses resultados alarmantes estão relacionados à precariedade histórica do sistema de saúde da região, mas também são resultado da omissão criminosa do presidente Bolsonaro no enfrentamento da pandemia. Ainda nesse campo, o conceito de sentinela pode nos ajudar, uma vez que o populismo autoritário do governo se manifesta na tentativa de destruição de todas as instâncias que funcionam como “sentinelas democráticos”, incluindo as próprias atividades estatais de controle e monitoramento. Por outro lado, podemos notar alianças cada vez mais amplas surgindo por todo o país. As tentativas de sabotagem ao controle da pandemia foram acompanhadas dos “panelaços”, um tipo de protesto no qual milhares de pessoas vão às janelas produzindo sons e ruídos que funcionam como alertas de ataque à democracia. No último mês, as sociedades científicas brasileiras se uniram para denunciar o desmonte nas agências ambientais, sanitárias e culturais. Por fim, no momento em que escrevo, os próprios povos indígenas vão ao Supremo Tribunal Federal para obrigar a União Federal a garantir a proteção das terras indígenas contra o avanço do vírus, mas também contra os invasores humanos. Lembrando a intuição de Kafka caberia, por fim, perguntar: poderá a transmutação da Justiça em deusa da caça adquirir uma função positiva de resistência e construção de mais democracia? Difícil saber. O certo é que todos esses elementos podem nos indicar que na Amazônia, e por todo o Brasil, vivemos uma batalha de caçadores e sentinelas em defesa da vida, da saúde e da democracia. Texto de: Alexandre Mendes
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