Pragmatismos
  • Home
  • Blog
  • Eventos
    • II Seminário Internacional Direito, Política e Literatura: fronteiras do humano, fronteiras da democracia
    • I Jornada de Estudos do Grupo Direito, Pragmatismos e Filosofia
    • I Seminário Internacional – O Trabalho das Linhas
  • Agenda
  • Publicações
    • Artigos
    • Livros
    • Teses e Dissertações
  • Arquivo
  • Podcast
  • Quem Somos
  • Contato
17 de agosto de 2020 por Alexandre Mendes

Direito e Literatura: uma ilusão interdisciplinar?

Direito e Literatura: uma ilusão interdisciplinar?
17 de agosto de 2020 por Alexandre Mendes
Comentário ao artigo de Julie Stone Peters, intitulado Law, literature and the vanishing real: on the future of an interdisciplinary illusion, de 2005. O artigo completo, contendo esse comentário, será publicado no livro do I Seminário Internacional Trabalho das Linhas: Estética, Política, Direito (no prelo), que está sendo co-organizado com o Laboratório Moitará. 

Crédito da imagem: René Magritte, La Reproduction Interdite, 1937.
Direito e Literatura: uma ilusão? 

 O artigo de Julie Peters Law, literature and the vanishing real: on the future of an interdisciplinary illusion (2005) tornou-se incontornável porque, ao contrário do consenso celebratório produzido desde a década de 1980, ele descreve o encontro interdisciplinar entre direito e literatura como um sucessivo fracasso, tanto em relação às mútuas expectativas que foram lançadas, quanto em relação às possibilidades político-teóricas que alimentaram o movimento desde o início. 

 Antes de entrar na análise dessa dupla frustração é preciso sublinhar dois pontos que podem passar despercebidos no artigo de Peters. Primeiro, existe no texto uma dimensão geracional que indica que pelo menos parte dos protagonistas do movimento Direito e Literatura eram herdeiros das lutas pelos direitos civis e contra a guerra do Vietnã (ou seja, herdeiros do ciclo de 1968). Segundo, há também uma dimensão temporal que inscreve o movimento no interstício que vai da crise do próprio ciclo de 1968 até a ascensão da direita a partir dos anos 1980. 

 Essa dupla inscrição indica, desde já, que a relação interdisciplinar Direito e Literatura possui uma dimensão de reação, no sentido específico de ser mais uma resposta à crise político-criativa do pós-1968, que uma agenda contemporânea ao ciclo de lutas americano. Para Julie Peters, essa reação se deu através de uma via de mão dupla e, por isso, a busca de uma interdisciplinaridade para solucionar duas angústias que eram simultâneas. 

A primeira, que atingia a Literatura, partia da percepção de que a crítica literária não dava conta de um tipo de intervenção no real que o Direito poderia suprir. Assim, uma aliança com as teorias jurídicas poderia inserir a literatura no campo de ativismo judicial, fenômeno que se seguiu às lutas de 1968, oferecendo uma dimensão concreta à disciplina. A segunda, que atingia o direito, dizia respeito à busca de um fundo valorativo sólido que pudesse enfrentar tanto o formalismo jurídico, como a crescente influência das teorias ligadas ao Law and Economics, garantindo, ao mesmo tempo, um arsenal interpretativo para levar a cabo o ativismo jurídico no âmbito do Sistema de Justiça.   

 Julie Peters tem razão ao perceber que essa tentativa de reencontro com o real acabou sendo movida por um vago espírito humanizador, que serviu de ponto de ligação das duas angústias: “a literatura poderia salvar o direito de si mesmo ao lembrá-lo de sua humanidade perdida, garantindo-lhe uma nova realidade através da infusão do humano. Ao mesmo tempo, ao dizer a verdade ao poder [através do direito], a literatura poderia, finalmente, fazer alguma coisa real”. 

A sala de espelhos: três tentativas de reconstrução do real 

 Peters prossegue a sua análise crítica a partir de três eixos de aproximação entre direito e literatura: a) o direito como retórica de James Boyd White; b) o direito como hermenêutica em Ronald Dworkin; c) o direito como narrativa ou como contação de histórias (narrative jurisprudence e legal storytelling movement). 

 (a) O livro de James Boyd White The Legal Imagination (1973/1985) se transforma num dos pontos de partida mais reconhecidos do movimento Law and Literature ao afirmar que “o direito não é um sistema de regras, ou algo que pode ser reduzido às escolhas políticas ou conflitos de interesse, ele é antes aquilo que eu chamo de linguagem” (White, 1985, p. xiii). Isso significa que o direito deveria ser entendido como uma área específica da retórica, uma arte manuseável por seus operadores, que participam do processo de compor e estruturar narrativas, mesmo que através de mecanismos de coerção previstos legalmente. 

 A partir dessa premissa, White define duas questões essenciais que deveriam interrogar o direito: a) até que ponto o outro pode contar a sua história, ser ouvido e ser reconhecido, sem ser desumanizado ou manipulado?; b) como o direito poderia colocar essas falas em contato, integrando as diferenças em uma única composição? É no enfrentamento dessas duas questões que a relação entre direito e literatura se mostraria profícua: a literatura poderia colaborar com o direito ao trazer narrativas não tradicionais e dilemas éticos que demonstram os limites do formalismo jurídico; o direito poderia integrar essas narrativas em seu processo de persecução da justiça. 

 (b) Alguns anos mais tarde, o debate jurídico americano recebeu outra proposta de aproximação entre direito e literatura, elaborada por Ronald Dworkin, que postulou a conhecida imagem do direito como um grande romance em cadeia no qual os julgadores são comparados a escritores comprometidos com a integridade de uma obra em construção. Embora essa imagem tenha sido tomada apenas em seus efeitos hermenêuticos - ou seja, como possibilidade de superar de maneira não relativista interpretações baseadas apenas em textos legais, na intenção dos legisladores ou em concepções heterodoxas do direito (anarquistas, marxistas, religiosas etc.), existe nela uma clara dimensão política, que ainda é pouco explorada. 

 Julie Peters, mais uma vez, oferece uma boa pista ao constatar que a “virada hermenêutica” dworkiana cumpria o duplo papel de afastar as interpretações jurídicas conservadoras e tradicionalistas (em ascensão naquele momento pelas nomeações de Reagan no Sistema Justiça) e realizar um esforço de reconstrução. O alicerce desse esforço pode ser encontrado na ideia de uma “comunidade de princípios”, fundada na história institucional americana e movida por um potencial reflexivo voltado para as melhores interpretações dessa mesma história. A figura do direito como romance em cadeia encarnava, portanto, a retomada de um ideário de cooperação social e de progressismo político-jurídico, num ambiente cultural fraturado pelo ceticismo, pelo radicalismo vazio, ou pela ascensão ultraconservadora. 

 (c) Julie Peters, por fim, comenta duas agendas de pesquisas complementares denominadas narrative jurisprudencee storytelling movement, que também se consolidaram a partir dos anos 80, propondo uma nova teoria crítica adequada às lutas dos movimentos sociais. A proposta parte de duas premissas: a) a primeira, de que o direito exerceria uma violência baseada em narrativas majoritárias, cuja origem e estrutura deveriam ser reveladas; b) a segunda, que, se essas narrativas controlavam os espaços da justiça e as decisões judiciais, uma crítica radical do direito deveria promover as contra-narrativas e as estórias daqueles que são destituídos de poder jurídico. 

 O real aqui é reconstituído, não por sua indexação a uma cadeia de interpretações ligada à história institucional americana, como em Dworkin, mas por uma invocação moral e direta da fala dos oprimidos e de suas experiências verdadeiras. Peters não deixa de apontar para o resultado curioso dessa operação: a crítica literária e jurídica encontra uma fundação ética de bases essencialistas, após décadas de teorias que apontavam para a direção oposta: 

“Muitos teóricos do direito e da literatura, quando escreveram sobre a jurisprudence narrative [teoria narrativa do direito], foram críticos com relação às pressuposições de uma verdade inerente, de uma função exemplar ou moral das estórias trabalhadas. Mas a teoria narrativa do direito vestiu, de forma atraente, suas pretensões de verdade com uma retórica humanista requentada, tornada palatável por um deslocamento para o campo do conflito político e da psicologia da opressão” . 

 Em sua conclusão, Peters explicita a dimensão de idealização presente nas expectativas recíprocas que aproximaram direito e literatura. Na ávida busca de refundação de um real estilhaçado pela crise do pós-1968, as duas disciplinas acabaram entrando em uma “sala de espelhos” onde a literatura reforçava a dimensão idealista do ativismo jurídico e o direito reforçava as pretensões humanizadoras da literatura. Cada uma delas buscava, justamente, aquilo que a outra não podia mais oferecer: a literatura já havia perdido suas pretensões universalizadoras e humanistas despindo a narrativa de sua carga autoral, exemplar ou moral; o ativismo jurídico, por sua vez, se mostrava enredado numa teia de regulações, procedimentos dispersos e pressões utilitárias que limitavam qualquer expectativa compreensiva de intervenção na realidade. Apesar disso, nos escombros deixados pelos levantes americanos, ambas as propostas se encontram na busca de um real que aspirava “por autenticidade ética, certeza ontológica e honestidade narrativa”. 

 Assim, se seguirmos o raciocínio da autora, o vago humanismo que selou a união entre Direito e Literatura, enclausurou as disciplinas em uma redundância reativa cujo signo é a crise criativa dessa aproximação. A “sala de espelhos”, mencionada por Peters, revelou-se como a antessala de um Tribunal: o direito reencontrou um fundamento para continuar emitindo os seus juízos, a literatura encontrou o real na forma pré-estabelecida da Justiça. Dessa forma, as ansiedades recíprocas diante de um real evanescente empurraram o movimento para uma tentativa de refundação ética que, curiosamente, deixava de lado os critérios de avaliação e de interpretação que podem existir diante de uma nova ordem do sensível.

 É nessa dimensão reativa que, portanto, reside todo o problema. Se partirmos da premissa de que acontecimentos como os levantes de 1968 (ou Junho de 2013, por que não?) promovem “choques” que alteram radicalmente os parâmetros que organizam a relação entre o fluxo sensível, a ordenação das ideias e as verdades prévias - isto é, se colocam na gênese do próprio sentido - uma série de novos desafios surgem, revelando a insuficiência das tentativas de refundação semântica do real. Na leitura realizada pelo filósofo François Zourabichvili, trata-se de um momento em que a realidade é fissurada e foge de toda significação prévia, abrindo um estranho campo polívoco a partir do qual novas possibilidades são criadas. É justamente do paradoxo lógico da coexistência de possibilidades radicalmente diferentes que derivam as novas condições de emergência das significações, das manifestações e das designações, oferecendo um novo sentido à linguagem.

 Diante das turbulências de 1968, o movimento Direito e Literatura, talvez, tenha sofrido de um problema de estilo. Para Bárbara Szaniecki e Talita Tibola: “o estilo não diz respeito à beleza, à proporção ou ao equilíbrio, mas à capacidade de desvio, de provocar derivas no real” (...). É preciso fabricar um estilo para “escapar das capturas, arrancar pedaços do real e da linguagem”. O que aconteceria se substituíssemos a busca do autêntico por uma pragmática do estilo? Se abríssemos mão de todo o fundamento para encontrar, no real evanescente, não uma matéria a ser julgada, mas um material vivo aberto a novas adições, desvios, práticas e combinações? Em um mundo atravessado por redes sociotécnicas e matérias extralinguísticas, avesso às totalizações dos juristas e dos escritores universais, quais desvios estão sendo criados para relacionar, novamente, direito e literatura? Assunto, sem dúvida, para outros textos, e para uma estimulante agenda de pesquisa.

Conferir também: 
Visualizações: 514
Artigo anteriorBrutalismo do AntropocenoPróximo artigo Notas do subsolo (Fiódor Dostoiévski), parte I:

Deixe um comentário Cancelar resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

quinze − quatro =

COMPARTILHAR

Facebook
fb-share-icon
Twitter
Tweet
LinkedIn
Share

Posts relacionados

Macunaíma: o Brasil como Pindorama11 de novembro de 2022
Dostoiévski e o império6 de junho de 2022
AOS CALUNIADORES DA RÚSSIA19 de abril de 2022
Prefácio para o Livro “O Making da Metrópole”14 de dezembro de 2021
O crítico e o caçador: uma análise dos Capítulos II, III e IV obra Manhunts, de Grégoire Chamayou – Parte II25 de outubro de 2021

Posts populares

Impasses sul-americanos: um diálogo entre lideranças indígenas e a universidade2 comments
Saídas Kafkianas: uma leitura sobre o conto “Um Relatório para a Academia”1 comments
Macunaíma: artista da transformação0 comments
Linguagem, pragmatismo e um antigo conceito0 comments
É hora de olhar novamente para os “black commons” e a propriedade coletiva?0 comments

Categorias

  • Destaque
  • Evento
  • Filmes
  • Filosofia
  • Livros
  • Músicas
  • Sem categoria
Grupo de pesquisa vinculado ao Centro de Ciências Sociais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e ao Programa de Pós-Graduação em Direito (PPGD/UERJ), através da linha Teoria e Filosofia do Direito.
FALE COM A GENTE pragmatismos@gmail.com

podcast Pragmatismos

Redes sociais

Links e parceiros

© 2021 Pragmatismos. Todos os direitos reservados.
Este site armazena dados como cookies para habilitar a funcionalidade necessária, incluindo análises, segmentação e personalização. Aviso sobre cookies.
Cookie SettingsACEITAR
Manage consent

Privacy Overview

This website uses cookies to improve your experience while you navigate through the website. Out of these, the cookies that are categorized as necessary are stored on your browser as they are essential for the working of basic functionalities of the website. We also use third-party cookies that help us analyze and understand how you use this website. These cookies will be stored in your browser only with your consent. You also have the option to opt-out of these cookies. But opting out of some of these cookies may affect your browsing experience.
Necessary
Sempre ativado
Necessary cookies are absolutely essential for the website to function properly. These cookies ensure basic functionalities and security features of the website, anonymously.
CookieDuraçãoDescrição
cookielawinfo-checkbox-analytics11 monthsThis cookie is set by GDPR Cookie Consent plugin. The cookie is used to store the user consent for the cookies in the category "Analytics".
cookielawinfo-checkbox-functional11 monthsThe cookie is set by GDPR cookie consent to record the user consent for the cookies in the category "Functional".
cookielawinfo-checkbox-necessary11 monthsThis cookie is set by GDPR Cookie Consent plugin. The cookies is used to store the user consent for the cookies in the category "Necessary".
cookielawinfo-checkbox-others11 monthsThis cookie is set by GDPR Cookie Consent plugin. The cookie is used to store the user consent for the cookies in the category "Other.
cookielawinfo-checkbox-performance11 monthsThis cookie is set by GDPR Cookie Consent plugin. The cookie is used to store the user consent for the cookies in the category "Performance".
viewed_cookie_policy11 monthsThe cookie is set by the GDPR Cookie Consent plugin and is used to store whether or not user has consented to the use of cookies. It does not store any personal data.
Functional
Functional cookies help to perform certain functionalities like sharing the content of the website on social media platforms, collect feedbacks, and other third-party features.
Performance
Performance cookies are used to understand and analyze the key performance indexes of the website which helps in delivering a better user experience for the visitors.
Analytics
Analytical cookies are used to understand how visitors interact with the website. These cookies help provide information on metrics the number of visitors, bounce rate, traffic source, etc.
Advertisement
Advertisement cookies are used to provide visitors with relevant ads and marketing campaigns. These cookies track visitors across websites and collect information to provide customized ads.
Others
Other uncategorized cookies are those that are being analyzed and have not been classified into a category as yet.
SALVAR E ACEITAR