Alexandre F. Mendes (Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ)
O objetivo da minha intervenção nesta tarde é abordar o livro do escritor modernista Mario de Andrade, intitulado Macunaíma: o herói sem nenhum caráter (1928), como um espaço literário ambivalente e marcado por duas leituras sobre o Brasil. Através da primeira visão – que chamo de o Brasil como Programa – o país é submetido ao ideário da formação nacional, apesar de sua posição periférica em face da cultura europeia. Através da segunda visão – que chamo, seguindo Oswald de Andrade, de Brasil como Pindorama (“Lugar das Palmeiras”, em tupi) – o país é visto como um espaço de reinvenção permanente que neutraliza o poder conformador das utopias messiânicas.
I
De início, vale dizer que esta proposta surge do meu contato com dois tipos de recepção da perspectiva antropofágica: (a) no campo da crítica literária, tenho sido influenciado pelo trabalho primoroso do grupo de poetas e acadêmicos que se reuniram na revista Noigandres (1950), entre eles, Haroldo de Campos, Augusto de Campos, Décio Pignattari e, depois, Leda Tenório da Motta; (b) no campo da crítica política e estética, devo mencionar o meu convívio, por 15 anos, com os colegas e amigos da Universidade Nômade que me ajudam, até hoje, a evitar as armadilhas essencialistas do discurso nacionalista, hoje reciclado no interior das dinâmicas da globalização.
Após esses comentários introdutórios, proponho iniciar pelo livro mais recente de Leda Tenório da Motta, intitulado Cem anos da Semana de Arte moderna: o gabinete paulista e a conjuração das vanguardas (2022). No livro, Motta decide polemizar contra o que ela denomina de “gabinete paulista”, um conjunto de iniciativas acadêmicas que busca domesticar a linha antropofágica do modernismo brasileiro de 1922. Curiosamente, não só Macunaíma está no meio desta disputa, como a normalização dessa dimensão mais radical foi incentivada pelo próprio Mário de Andrade, em seu balanço autocrítico dos 20 anos da Semana intitulado o Discurso do Itamaraty, de 1942. Para Mário, o principal legado da Semana de Arte Moderna para o Brasil foi a aquisição de um direito à pesquisa crítica cujo pano de fundo é a possibilidade de estabilização de uma consciência e de um espírito nacional.
Contra esse ideal de estabilização, Leda Tenório da Motta afirma que a criatividade dos primeiros anos modernistas só foi possível por não estar enclausurada no purismo ideológico dos anos seguintes (a Era Vargas, no Brasil). Sem qualquer sentimento de culpa e de sacrifício, o Brasil aparece como um material a ser trabalhado pelo avesso, sendo utilizado como provocação desaforada contra a nossa subordinação ao purismo lusitano e à diluição retórica do bacharelismo colonial e imperial. O alvo é claro e Oswald o explicita, em 1924, no seu Manifesto da Poesia Pau-Brasil: “O lado doutor. Fatalidade do primeiro branco aportado e dominando politicamente as selvas selvagens. O bacharel. Não podemos deixar de ser doutos. Doutores. País de dores anônimas, de doutores anônimos. (…) Eruditamos tudo”.
Ao fatalismo erudito e bem-pensante, Oswald contrapõe a intensidade dos paradoxos: o Brasil é e não é brasileiro, a vanguarda ilumina um futuro já contido no barroco carnavalizado da Bahia do séc. XVII, a presença do bárbaro sul-americano é vislumbrada de um velho quarto na Place Clichy, em Paris. Não há contradição. É a partir da multiplicidade que as mais diversas dores e alegrias saem do anonimato, rejeitando o esconderijo forjado pelo discurso ilustrado. O que resta escancarado é o que nos une e dois protocolos “deontológicos” devem reger essa experiência: multiplicidade e não contradição; devoração crítica e não assimilação subordinada.
São esses protocolos que estarão em jogo nas diferentes leituras possíveis de Macunaíma. O campo de interpretação é fértil: Mário descobre o mito através do contato com as narrativas indígenas recolhidas pelo antropólogo alemão Theodor Koch-Grünberg e o associa a elementos da cultura popular brasileira e da cultura urbana-industrial de São Paulo. Ao notar que Macunaíma, em sua ambiguidade, não tem caráter – pois ele é, ao mesmo tempo, herói e anti-herói: o trickster por excelência – Mário o coloca em dupla posição:
(a) De um lado, o escritor utiliza o mito para indicar que o Brasil seria indeciso como Macunaíma. Isto é, ao contrário das nações civilizadas, o país possuiria somente alguns traços identificáveis, sem formar um caráter definido. Ele seria um símbolo da nossa ausência de nacionalidade e de uma narrativa estável sobre a cultura brasileira;
(b) De outro lado, Mario insere Macunaíma em uma proliferação de transmutações que impedem o processo de formação nacional e de constituição de uma narrativa homogênea. Macunaíma se apresenta aqui como multiplicidade antropofágica: o encontro, permeado pela devoração, entre animais extravagantes, agentes cósmicos, pássaros de todas as espécies, mulheres guerreiras, religiões afro-brasileiras, cancioneiros nordestinos, sotaques sulistas, migrantes italianos, alemães, trabalhadores da cidade etc.
II
A primeira linha de interpretação tenta, continuamente, amortecer o impacto das leituras antropofágicas realizadas desde a celebração de Macunaíma, por Oswald de Andrade. Não seria equivocado dizer, para fazer referência à temática do Seminário, que a antropofagia não só já foi decolonizada, como o foi desde o início, ao ser submetida à lógica da contradição e da oposição à cultura europeia.
Para oferecer um exemplo desse tipo de vigilância dicotômica, gostaria de relembrar a leitura de Macunaíma realizada pela ex-professora da USP, Gilda de Mello Souza. O alvo da autora é o poeta concretista Haroldo de Campos e sua tese de doutorado intitulada A morfologia de Macunaíma (1973). No ensaio O tupi e o alaúde (1979), Souza tenta neutralizar a proposta de Campos de explicar a estrutura narrativa de Macunaíma a partir de uma “brincadeira” com as regras anônimas da lógica fabular e por um tipo de bricolagem concretista, semelhante a que Lévi-Strauss identificou no dito pensamento selvagem (1962).
Gilda de Mello Souza, investindo contra essa tentativa de “rebarbarizar” Macunaíma, tenta resgatar a dimensão simbólica do texto e o jogo de oposição com a cultura europeia. Em primeiro lugar, o livro é encapsulado no conceito de “obra” e retorna ao projeto nacionalista de Mário de Andrade. Segundo ela, Mário admitiu que “semeara o texto com intenções, referências figuradas, símbolos e que tudo isso definia os elementos de uma psicologia própria, de uma cultura nacional (…)”. Em segundo lugar, Souza ataca o conceito de bricolagem, abordando a narrativa do livro a partir da forma de composição da música folclórica brasileira, uma junção contraditória entre a suíte europeia e a improvisação dos cantadores populares. Essa contradição está no centro e perpassa outras características do livro: o Brasil tenta se encontrar através de uma jornada “arturiana” totalmente europeia (a autora refere-se a busca do Muiraquitã, a pedra mágica indígena, por Macunaíma”); a ênfase nas danças folclóricas, como o bumba-meu-boi, desagua diretamente no bailado português; a busca pelo tupi, a língua geral indígena, encontra ao final o alaúde, o principal instrumento musical da cultura europeia.
Por isso, para Souza, Macunaíma não poderia ter outro desfecho, senão um final melancólico e pessimista, fruto da contradição insolúvel entre a velha herança europeia e as fontes locais de inspiração. No livro, o herói vence Piaimã, defendendo os valores de Uraricoera (o mundo não-europeu) contra Venceslau Pietro Petra, rico fazendeiro e gigante comedor de gente, na visão indígena. No entanto, de volta à Amazônia, encontra a derrota diante da Vei, a deusa-sol (uma entidade tropical e indígena), ao preterir uma de suas filhas em favor de uma mulher portuguesa. Mário vive uma tensão “decolonial” que nunca será resolvida, inviabilizando o otimismo das leituras antropofágicas e, curiosamente, unindo brasileiros e europeus numa espécie de solo moral comum, baseado na culpa e na indulgência recíproca.
Além disso, esta falta constitutiva nos conduz, na crítica de Campos e da Motta, a uma visão sociológica que busca na literatura um mero instrumento de autoconsciência nacional. Não à toa, Gilda de Mello compartilha a visão de Antônio Cândido de que a formação da literatura nacional esteve ligada ao processo de autoconhecimento de nossa contradição constitutiva. Campos e da Motta, recepcionam, pioneiramente, Jacques Derrida no Brasil, para mostrar que essa visão promove uma redução da intertextualidade literária em razão da presença substantiva de um extratexto baseado na falta. A ideia de formar uma literatura “decolonial” (nas minhas palavras) pela estabilização da crítica nacional é prisioneira de um enquadramento sociológico prévio. Estamos diante de uma “metafísica da presença” que, na periferia, se impõe pela contradição. Uma jornada malograda do logos em busca de seu espírito (de seu “caráter”) que nos levaria ao desfecho de Macunaíma: não encontrar um lugar neste mundo e subir ao céu como uma estrela apontada para o Norte.
A crítica literária, por sua vez, se torna, como em Roberto Schwarz, uma “crítica exigente”, séria e engajada politicamente. Algo bem distinto das despreocupadas blagues antropofágicas, condenadas por Schwarz por apresentar um viés mercadológico e burguês. Sua imponente missão seria realizar “a sondagem do mundo contemporâneo através da literatura” (Que horas são? 1987) e escutar o logos desde a periferia. Pelas vias do discurso acadêmico retornamos à erudição pretensiosa dos bacharéis. O comentário do próprio Mario de Andrade – de que Macunaíma foi escrito como uma brincadeira de férias – é esquecido em favor da seriedade programática. A normatividade dos grandes projetos se torna necessária. É preciso assumir uma atitude crítica e engajada, mesmo que prolonguemos, no final das contas, o drama moral do nosso academicismo inofensivo: a oscilação entre o impulso retórico grandiloquente e a paralisia da autovitimização.
III
Como, então, re-antropofagizar Macunaíma, liberando-o desse duplo constrangimento?
Tentarei responder à questão, encaminhando-me para a conclusão, destacando duas propostas que conformam o Brasil como Pindorama, e não como programa. Em primeiro lugar, seria preciso mobilizar a violência do riso contra a violência da retórica grandiloquente. Macunaíma é um trickster humorista e satiriza, tanto as cartas dos primeiros “descobridores” europeus, como o discurso bacharelesco do grande jurista Rui Barbosa. A carnavalização da palavra – o uso da bricolagem, do à cotê linguístico, da blague, dos estrangeirismos – é capaz, também, de neutralizar a metafísica logocêntrica inscrita na retórica da formação nacional. Remontando ao barroco baiano, Haroldo de Campos denomina de “hiperléxico” esse discurso que ataca o logos ocidental através de uma ética do desperdício e de uma poética do lúdico.
Em segundo lugar, na esteira do trabalho psicanalítico de Julia Kristeva, da Motta nos lembra que o último vislumbre utópico de Oswald de Andrade foi o Matriarcado de Pindorama, em seus escritos dos anos 1950. A transformação do tabu em totem, invertendo a fórmula freudiana, teria a função de suspender o temor religioso pelo grande paie afetar as fundações do direito paterno, baseado na divisão entre o masculino e o feminino. O regime maternal, aquele de corpos nascendo e se alimentando de outros corpos, não reivindica o amor no sentido platônico, como falta, mas como júbilo em excesso, sem desejo expansionista. A linguagem viril da formação nacional é, desta vez, confrontada por aquilo que Kristeva denomina de Khôra: um retorno pré-discursivo ao materno, uma língua não comunicativa que emerge dos vãos da significância. O efeito é semelhante à violência do riso que mencionamos no ponto anterior. Leda Tenório da Motta explica: “é por essa via de uma poesia em vertigem que o feminino de Kristeva mais se presta a ser comparado ao de Oswald. Já que é junto com a agramaticalidade que a devoração oswaldiana impõe a sua natureza feminina anterior à violência da cultura”.
Se Makunaima continua vivo e percorrendo o mundo até hoje, ao contrário do destino melancólico previsto por Mário, é porque ele soube se desviar das utopias messiânicas e criar o seu Pindorama. É Jaider Esbell, artista macuxi, que nos lembra que a arte de Makunaima não cabe na dicotomia entre o colonial e o decolonial, pois é uma arte de transformação. Afirma Esbell: “faço saber ainda que não temos definição, que viemos de um tempo contínuo, sem estacionar. (…). Antes mesmo, devo dizer que tanto meu avô Makunaima quanto eu mesmo, parte direta dele, somos artistas da transformação”. Makunaima, para Esbell, é uma energia densa e forte que percorre o mundo, “com fonte própria, como uma bananeira”. O ideário de formação do povo nacional dá lugar a uma fabulação cujo centro é uma “gente-nação de identidade desafiadora, beirando o fantástico”. O trickster Makunaima segue brincando conosco, fazendo-nos encontrar, após todo esse esforço de argumentação, a mesma fórmula divulgada através do livro de Mário: Macunaíma, o herói de nossa gente.
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Palestra apresentada originalmente no Seminário Decolonising cannibalism or cannibalising the decolonial, no dia 17 de setembro de 2022 (UFRJ/Essex). Organização: Raluca Soreano; Carolina Salomão; Giuseppe Cocco.