Robert Richardson, premiado biógrafo de pensadores como Ralph Waldo Emerson, Henry David Thoreau e William James, faleceu no dia 16 de junho deste ano (2020). Através da tradução do prólogo do livro William James: In the Maelstrom of American Modernism (2006), prestamos a nossa homenagem e indicamos os seus livros para os leitores deste site. Para acessar a versão original do texto, publicada no Blackbird Archive, consultar aqui.
Prólogo do livro William James: In the Maelstrom of American Modernism (2006), por Robert Richardson
Ele já não estava dormindo bem em Palo Alto, durante todo o semestre. Sofria de angina e passou por vários problemas com a gota. William James estava acordado em sua cama, por volta de cinco e pouca da manhã, do dia 18 de abril, quando o grande terremoto de 1906 eclodiu. James tinha sessenta e quatro anos e já era bastante reconhecido em sua atividade de professor e por seu trabalho em psicologia, filosofia e religião. Naquele ano, ele se dedicava à tarefa de professor visitante na Universidade de Stanford, a vinte e cinco milhas ao sul de São Francisco. Sua missão era colocar Stanford no mapa da filosofia. Jesse Cook, um sargento de polícia que estava de plantão naquela manhã, no mercado de São Francisco, notou, de início, os cavalos em pânico e depois viu o terremoto começar. “Houve um enorme estrondo, enorme e terrível”, disse Cook, “e então eu pude ver o terremoto chegando a Washington Street. A rua inteira estava ondulando. Era como se as ondas do oceano viessem em minha direção.[i] John Barrett, o novo editor local do jornal Examiner, já estava em seu escritório quando ouviu “um longo e baixo gemido que fazia os edifícios dançarem sobre suas fundações”. Barrett e seus colegas ficaram atônitos. “Era como se a terra estivesse escapando por debaixo dos nossos pés. Houve um balanço aflitivo e, rapidamente, todos já estavam no chão”. Olhando para cima, Barrett viu edifícios próximos “apanhados em uma dança macabra... Eles avançavam para a rua e depois recuavam, apenas para repetir o movimento com ainda mais determinação.”[ii] James Hopper, repórter do Call, estava em sua cama, em casa. Ele se precipitou para a janela. “Ouvi o barulho de tijolos caindo”, escreveu ele, “e, ao mesmo tempo, vi uma pálida lua crescente no céu esverdeado”. O hotel St. Francis ondulava para lá e para cá com um balanço tão violento e acentuado que parecia uma árvore em plena tempestade. “Então a parte de trás do meu prédio, por volta de três andares acima, desabou. O bloco atingiu uma série de pequenas casas de madeira que ficavam na ruela abaixo. Eu as vi caindo e quebrando como ovos vazios, e os tijolos atravessando os telhados que pareciam um papel de seda. Eu tive aquele sentimento de finitude. Isso é a morte”.[iii] Do lado de fora, nas ruas, “os trilhos dos bondes estavam torcidos, com os seus fios elétricos no chão, contorcendo-se como serpentes e lançando faíscas azuis a todo o momento”. Barrett viu que “a rua estava rachada em vários lugares. De algumas crateras, a água jorrava; de outras, os gases.” Hóspedes atônitos no Palace Hotel olhavam por uma das poucas janelas intactas e viam uma mulher de camisola carregando um bebê pelas pernas, "como se fosse um peru amarrado".[iv] Nos primeiros momentos após o terremoto, houve um silêncio total. As ruas, lembra Hopper, “estavam cheias de pessoas, vestidas como podiam, desgrenhadas, mas silenciosas, totalmente silenciosas”.[v] Em San Jose, ao sul de Palo Alto, seguindo o caminho da fenda que fora aberta, os prédios do sanatório público em Agnews desabaram produzindo um ronco ouvido por quilômetros, matando ao todo cem pessoas, incluindo oitenta e sete internos. Alguns dos sobreviventes mais violentos correram, atacando qualquer um que se aproximasse. Um médico sugeriu que, em não havendo mais lugar para colocá-los, eles deveriam ser amarrados. Os atendentes trouxeram cordas e atavam os internos, pelas mãos e pelos pés, nas poucas (e pequenas) árvores que restavam. Em Palo Alto, o pátio de pedra de Stanford foi destruído. Quatorze prédios caíram; o teto da igreja desabou. O jardim botânico foi despedaçado como se tivesse sido atravessado por um arado gigante. Uma estátua de Louis Agassiz caiu de seu suporte e mergulhou na calçada, onde foi fotografada com a cabeça no chão e os pés pelo ar. Stanford ainda estava na pausa relativa ao feriado da Páscoa. Quase todos os estudantes estavam fora. Um deles, no entanto, permanecia no quarto andar do Encina Hall, um grande dormitório feito de pedra. Ele pulou da cama, mas foi instantaneamente jogado no chão. "Então, com um som terrível, sinistro e retumbante, tudo acabou cedendo. Ele desceu pelos três andares mais baixos até o porão, acompanhado por chaminés, vigas, paredes, e tudo que havia ali,” O aluno, que mais tarde relatou tudo a James, acrescentou que não sentiu medo na hora, embora ele tivesse pensado: "este é o meu fim, esta é a minha morte".[vi] A primeira coisa que William James notou enquanto estava acordado na cama, no apartamento que dividia com sua esposa Alice, no campus de Stanford, foi que "a cama começou a balançar". Ele sentou-se, involuntariamente, e depois tentou ajoelhar-se, mas foi logo jogado ao chão quando o terremoto chacoalhou toda a sala, “exatamente como um Bull Terrier sacode um rato”. Em um pequeno artigo sobre o evento, escrito 23 dias depois, James lembrou que “tudo que estava em cima de alguma coisa caiu no chão; a escrivaninha e o cômodo foram destruídos com uma pancada. E, quando o ápice foi atingido, o reboco da parede rachou, um barulho terrível preencheu o ar de fora e, em um instante, tudo ficou calmo novamente, salvo o murmúrio suave das vozes humanas que vinham de perto e de longe.”[vii] Todo o evento terminou em quarenta e oito segundos. A primeira resposta de James ao terremoto, ainda não refletida, foi de “alegria”, “admiração”, “deleite” e de “acolhimento”. James, segundo o seu próprio relato, não sentiu qualquer sensação de medo. "Vamos lá!", quase gritou alto, “Vamos mais forte!”. Marco Aurélio, que James admirava e que pregou: "Ó Universo, eu quero o que você quer", dificilmente poderia ter aperfeiçoado esse abraço hesitante, feroz e alegre que James ofereceu à terrível força da natureza. Foi para James um momento de contato com a realidade elementar, como a epifania de Thoreau no topo do Monte Katahdin, como no momento em que Emerson abriu o caixão de sua jovem e falecida esposa, ou como o clímax do poema A grammarian’s Funeral de Robert Browning (um dos favoritos de James), em que a procissão fúnebre de um professor, pouco notado, mas profundamente dedicado, cujo trabalho paciente fez renascer a paixão pelo ensino, se alça do vale da vida ordinária para as heroicas e alpinas alturas às quais o seu espírito pertence: "Aqui - aqui é o lugar dele, onde meteoros caem, nuvens se formam, / relâmpagos são disparados, / estrelas vêm e vão! Deixemos a alegria romper com a tempestade”. A segunda resposta de James foi correr para o quarto de sua esposa. Alice não se machucou e também não sentiu medo. Então, James foi com uma jovem colega, Lillien Martin, para o meio da devastação que virou o centro de São Francisco em busca de sua irmã, que acabou aparecendo sem ferimentos. A simpatia ativa de James e a sua rápida mobilização eram típicas, assim como foi a sua terceira resposta ao evento, indagando a todos que passavam o que sentiam em relação ao terremoto. Sua entrada no diário, feita no dia seguinte, em 19 de abril, diz simplesmente: “Falei sobre terremoto durante todo o dia”.[viii] Também era inteiramente previsível que ele escrevesse e publicasse um breve relato da experiência, no qual observou que era quase impossível evitar personificar o evento e que o desastre teria mobilizado as melhores energias de muitas pessoas.”[ix] O zelo de James com a sua esposa, a preocupação com a sua colega, as anotações sobre o que teria aprendido naquele evento lhe parecem totalmente habituais. É justamente essa sua resposta inicial, quase irrefletida e espontânea, que abre uma porta para a nossa compreensão do filósofo. James possuía o que muitos chamam de uma “natureza incrivelmente experimentadora” e estava de forma surpreendente, e até alarmante, aberto a novas experiências. Um dos seus estudantes comentou que, por vezes, ele fazia experiências ousadas com várias drogas e gases não testados. Essa vocação a assumir riscos, essa avidez pela maior variedade possível de experiências da consciência, criaram em James uma abertura aos acontecimentos que muitos podem considerar fora do normal. Tem sido sugerido que a experiência do terremoto foi para James o equivalente mais próximo de uma experiência de guerra. Talvez tenha sido realmente isso - e talvez tenha sido ainda mais. Ele já não acreditava - se é que algum dia acreditou - em um mundo fixo, construído sobre uma fundação sólida. O terremoto foi para ele uma pista sobre a condição real das coisas, da situação real. O evento revelou um mundo (como a própria concepção de consciência de James) que é puro fluxo, que não possui nada de estável, de permanente ou de absoluto. James teria quatro anos de vida após o terremoto de 1906 e o seu trabalho estava longe de ser concluído. Em 1909, ele ainda tentava desenvolver algumas de suas ideias mais desafiadoras e significativas através do livro chamado A pluralistic Universe. Nele, James rejeita firmemente o que chama de "felicidade imóvel da perfeição inerente ao absoluto". Ele recusa, com efeito, a ideia de que tudo está destinado a integrar um sistema grandioso, interligado, necessário e benevolente.[x] Para James, existem muitos centros do universo, muitos pontos de vista, muitos sistemas, uma boa dose de conflito e de mal, mas também de beleza e de bondade. Trata-se, diz ele, de “um universo de ‘cadas’ [eaches]”[xi]. O universo de James é incrivelmente rico, infinitamente abundante e variado, unificado apenas em cada parte que nele está viva. Citando o pensador alemão Gustav Fechner, como uma espécie de garantia intelectual protetora - uma manobra comum para o hábil entusiasta cuja admiração transbordante se estendeu a escritores e pensadores em todas as direções -, James faz coro a uma “visão do mundo tomada à luz do dia”. Esta visão é aquela de que “o universo inteiro, em suas diferentes extensões e durações, exclusões e incorporações, está vivo e consciente em todos os lugares”.[xii] No livro Pragmatism, publicado um ano após o terremoto, ele escreveu: “eu me recuso, de forma veemente, a assumir que a nossa experiência humana é a forma mais alta de experiência existente no universo. Acredito, antes, que mantemos a mesma relação com o universo que os nossos cães e gatos de estimação possuem em relação à vida humana. Eles habitam nossas salas de estar e nossas bibliotecas. Eles participam de cenas de cujo significado não possuem a menor suspeita. Eles são apenas tangentes às curvas da história, cujos princípios, fins e formas estão para além do seu conhecimento. Mas, na exata medida em que nós, da mesma forma, somos tangentes para o aspecto mais amplo das coisas.”[xiii] A compreensão de James de como cada um de nós opera no mundo é parecida com a descrição que George Eliot fez sobre o espelho [tremó] e a vela, em Middlemarch. “O seu espelho ou superfície extensa de aço polido”, escreve Eliot, “esfregado por uma empregada doméstica, será minuciosamente e multiplamente arranhado em todas as direções. Mas coloque agora, contra ele, uma vela acesa como centro de iluminação e pronto! Os arranhões parecem se organizar em uma bela série de círculos concêntricos em volta daquele pequeno sol. É facilmente demonstrável que os arranhões estão indo para todos os lugares e de forma neutra, sendo a vela o instrumento que produz a lisonjeira ilusão de um arranjo concêntrico. Trata-se apenas da luz caindo a partir de uma seleção óptica específica. Esses fatos são uma parábola”, ela conclui. "Os arranhões são eventos, e a vela é o egoísmo de qualquer pessoa.” Para William James, também, o mundo, como um todo, é aleatório, e cada pessoa cria um padrão, um padrão diferente, a partir de um poder e um foco que são próprios. Não existe um único padrão abrangente ou englobante, seja ele oculto ou revelado. "Esculpimos a ordem", escreve James, "deixando de fora as partes desordenadas e, portanto, o mundo pode ser concebido pela analogia de uma floresta ou um bloco de mármore pelos quais parques e estátuas são produzidos, com a eliminação das árvores ou lascas de pedra que são irrelevantes”.[xiv] A imagem escolhida por Eliot, também sugere algo importante sobre a própria vida de James. Tendo o seu início de carreira saltado ousadamente da engenharia civil para a pintura, desta para a química, para depois ser um naturalista, um médico ou um pesquisador em fisiologia, qualquer biógrafo que tente localizar ou desvendar o James central, o James real, o James essencial, ou que tente elaborar um roteiro bem acabado, em cinco atos, sobre a sua vida, corre o risco de impor mais ordem do que verdadeiramente existiu – como aquele hagiógrafo medieval que registrou para o mundo o que os acadêmicos modernos resumiriam na fórmula: “tudo o que se sabe e mais um pouco sobre a vida de São Neot”. Nós temos pelo menos três razões para relembrar William James. Primeiro, como um cientista, um médico, um fisiologista e um psicólogo experimental, ancorado no laboratório, ele deu uma contribuição central no desenvolvimento do conceito moderno de consciência, na mesma época em que Freud estava desenvolvendo o conceito moderno de inconsciente. James era interessado em como a mente funciona; ele acreditava que os estados mentais estavam sempre relacionados a estados corporais e que as conexões entre os dois poderiam ser demonstradas empiricamente. Em segundo lugar, como um filósofo (a psicologia, em sua época, era uma subdivisão da filosofia e ensinada nos departamentos de filosofia das universidades), James é conhecido como uma das figuras proeminentes do movimento denominado “pragmatismo”, cuja premissa principal é que a verdade é algo que acontece a uma ideia; que a verdade de alguma coisa é o conjunto de todos os seus efeitos atuais. Não se trata, como alguns céticos interpretariam essa afirmação, da simples crença de que a verdade é qualquer coisa que funcione para você. Ela precisa funcionar para você e não contrariar qualquer fato conhecido. James estava mais interessado nos frutos do que nas raízes das ideias e das sensações. Ele acreditava, seriamente, naquilo que uma vez, formidavelmente, denominou de “fatos teimosos e irredutíveis”. Escritos em uma prosa fácil, destinada tanto ao especialista como ao leitor em geral, os livros de James, nas palavras de uma colega, transformam a “filosofia em algo interessante para qualquer pessoa”[xv]. Em terceiro lugar, James é o autor do livro The Varieties of Religious Experience, o texto fundador do moderno estudo da religião, uma obra tão disseminada nos estudos da religião que é possível escutar burburinhos na academia sobre um tal Rei James – e eles não estão se referindo à bíblia. O argumento de James neste livro é que a autoridade religiosa não se encontra nos livros, Bíblias, templos, credos ou profetas históricos. Ela não se encontra, tampouco, nas figuras de autoridade – sejam ministros paroquiais, papas e santos – mas nas experiências reais dos indivíduos. Essas experiências têm algumas características em comum, mas também variam de pessoa em pessoa e de cultura em cultura. O livro The Varieties of Religious Experience é, além disso, a inspiração não menos relevante e reconhecida da criação dos Alcóolicos Anônimos. É a compreensão de James do fenômeno da conversão que os AA consideram especialmente importante.[xvi] Ao tentar destacar a premissa central do pensamento de James, seu talentoso aluno, colega e biógrafo, Ralph Barton Perry, se dirigiu “à ideia germinal a partir da qual todo o seu pensamento floresceu... a ideia da natureza essencialmente ativa e implicada da mente humana”[xvii]. A mente nunca foi para James um mero órgão, uma “faculdade”, ou qualquer tipo de entidade fixa. Existe um bom grau de veracidade no comentário de Paul Conkin de que, se a psicologia perdeu sua alma com Kant, ela perdeu sua mente com James.[xviii] A mente para James é um processo ligado à função cerebral, envolvendo vias neurais, receptores e estímulos. A mente não existe, portanto, fora das operações do cérebro, do corpo e dos sentidos. A consciência, também, não seria uma entidade, mas um fluxo incessante, uma corrente ou um plano de impressões. James estava convencido de que nenhum estado mental “uma vez desaparecido pode ocorrer novamente e ser idêntico ao que era antes... Não há provas de que um fluxo que se internaliza nos dê a mesma sensação corporal duas vezes”. James propôs que o fato psicológico elementar “[não é] um pensamento ou esse pensamento ou aquele pensamento, mas meu pensamento”.[xix] O processo da mente, o fluxo real da consciência, é tudo o que existe. James lança, assim, seu desafio ao platonismo: “Uma 'ideia' que existe de forma permanente, aparecendo diante das luzes da consciência em intervalos periódicos, é uma entidade tão mitológica quanto o Valete de Espadas”.[xx] No lugar do mundo mitológico das ideias fixas, James nos deu um mundo de energias pulsantes, sentimentos potentes, mas evanescentes, ações ligadas ao pensamento e um foco profundo e implacável no “agora” da vida. Considerando todas as suas grandes realizações nos campos mais tradicionais da pesquisa, o melhor de James está, frequentemente, em suas investidas não ortodoxas, meio cegas e imprevisíveis, direcionadas à incontornável questão de como podemos conduzir a nossa vida, e nesse ponto o seu trabalho está na mesma altura de autores como Marco Aurélio, Montaigne, Samuel Johnson e Emerson. O melhor de James interpela o leitor de forma urgente, direta, pessoal e pertinente. Uma boa parte de seus escritos surgiu de sua atividade como professor e ainda não perdeu o calor do apelo pessoal, o som de sua própria voz. Em uma de suas palestras para os professores [Talk to teachers on psychology], ele afirmou: “Espinosa escreveu há muito tempo, em sua Ética, que qualquer coisa que um homem pode evitar a partir da ideia de que aquilo é ruim, também pode evitar sob a ideia de que uma outra coisa é boa. Aquele que age, habitualmente, sub specie mali, através de uma ideia negativa, a ideia de mal, é chamado de escravo por Espinosa. Àquele que age, habitualmente, sob a ideia de bem, ele dá o nome de homem livre. Peço-lhe agora que você faça de seus alunos homens livres, habituando-os a agir, sempre que possível, a partir da ideia de bem”.[xxi] A vida de James, como todas as que são vividas através de um vasto e constante contato humano, foi marcada por perdas e tragédias, que ele sentiu tão profundamente como qualquer outra pessoa. No entanto, a morte o levou, na maioria das vezes, a não especular sobre o que viria depois, mas a redobrar suas energias e a concentrar suas atenções para o aqui e o agora. Ele observou, no livro Pragmatism, que “qualquer pessoa que, alguma vez, tenha olhado para o rosto de uma criança ou de um parente morto” – e ele já tinha feito ambos – sabe que “o mero fato de que a matéria pôde, por algum tempo, assumir aquela forma preciosa, deveria fazer da matéria algo sagrado para sempre. Não faz nenhuma diferença saber qual seria o princípio da vida, material ou imaterial, o fato é que a matéria, de todo o modo, coopera e se presta a todos os propósitos da vida. Aquela amada encarnação estava entre as possibilidades da matéria”. Não é difícil adivinhar que quem escreve tais observações sensíveis acaba se tornando uma pessoa muito querida. No entanto, a maneira como ele acabou se tornando um escritor e, antes de tudo, um homem dessa envergadura, é mais difícil de entender. É disso que este livro irá tratar. A vida de James, especialmente a sua juventude, foi repleta de problemas, mas a tônica de sua vida não foram os seus problemas em si. Ele não deixa de ser um homem de nossa época ao acreditar que todos nós possuímos algum grau de cegueira “com relação aos sentimentos de criaturas e pessoas que são diferentes de nós mesmos”. Ele compreendeu bem esse fenômeno e destacou, reiteradamente, como é difícil, realmente, ver as coisas, ver qualquer coisa, do ponto de vista de outra pessoa. James, de seu modo, tinha as suas próprias cegueiras. Mas não abandonou o esforço de compreensão dos outros e defendeu que sempre que uma dimensão da vida “comunica um entusiasmo para quem o vive”, ali ela se torna genuinamente significante. Ele mesmo procurou o que denominou de hot spot da consciência de uma pessoa, o seu “centro habitual” de energia pessoal. James compreendeu o apelo das narrativas e, por isso, é com uma narrativa que ele expressou o seu ponto de vista sobre a alegria. Ele conta uma estória, tirada de um ensaio de Robert Louis Stevenson, na qual Stevenson descreve um jogo curioso que ele e seus amigos de escola costumavam jogar na medida em que o longo verão escocês acabava e a escola estava prestes a retornar. “Por volta do final de setembro", escreve Stevenson, "quando o retorno à escola se aproximava e as noites já estavam escuras, começávamos a sair de nossas respectivas [casas], cada um equipado com uma lamparina.” “(...) Usávamos as lamparinas amarradas à cintura, em um cinto de jogar críquete, e, por cima deles, tamanho era o rigor do jogo, um casaco abotoado. Elas tinham um cheiro forte de estanho queimado; na verdade, elas nunca queimavam direito, embora sempre queimassem os nossos dedos; seu uso era nulo, a diversão que provocavam era totalmente ilusória; no entanto, um garoto com uma lanterna debaixo do casaco, não queria saber de mais nada”. Quando dois desses [meninos] se encontravam, havia sempre uma pergunta ansiosa “Você pegou a sua lanterna?”, e um gratificante “Sim!”... Era a regra para mantermos a nossa glória controlada, ninguém poderia identificar aquele que porta uma lanterna, a não ser (como se identifica um furão-bravo) pelo cheiro. Quatro ou cinco iriam se meter no meio de um barco de pesca ou escolher alguns vãos entre os compartimentos, onde o vento soprava logo acima. Ali, os casacos seriam desabotoados e as lamparinas seriam reveladas e, diante do brilho evidente, por debaixo do imenso corredor de vento noturno, excitados pelo vapor intenso da lataria do barco, esses jovens e sortudos cavalheiros irão se agachar na areia fria dos vãos ou dos porões escamosos do barco para se deliciar com conversas de teor questionável. Mas, a conversa, diz Stevenson, era só um detalhe. “A essência desse tipo de alegria era poder andar sozinho numa noite escura, com o casaco perfeitamente abotoado, cintos afivelados, sem nenhum raio de luz escapando... como um simples pilar de escuridão no meio da própria escuridão e, durante todo esse tempo, bem no fundo da intimidade do seu coração, saber que você tem uma lanterna escondida no cinto, e poder cantar e exaltar o fato de possuir esse saber”. “A base que motiva a alegria de uma pessoa", diz James, é, frequentemente, difícil de discernir. “Pois observar um homem é cortejar a decepção... e perder ali a alegria é perder tudo. Na alegria dos atores reside todo o sentido da ação. Essa é a explicação, essa é a justificativa. Para alguém que não compartilha do segredo das lanternas, a cena dos vãos e dos porões não possui qualquer sentido”.[xxii] Os grandes mestres do misticismo judaico (ditos chassídicos) dizem que todos nós possuímos uma pequena fagulha que está à espera de se desencadear em fogo. Jean-Paul Sartre afirmava que não existem realmente indivíduos, apenas singularidades universais. William James diria que cada um de nós está sozinho, mas, ainda assim, cada um de nós possui uma lanterna. Sem essa lanterna, sem a nossa fagulha interior, nós estaríamos numa situação semelhante a do velho homem que foi notado por um repórter, alguns minutos após o terremoto de São Francisco, parado no meio da Union Square, “tentando, com grande esforço, decifrar a inscrição contida no monumento a George Dewey, através dos óculos cujas lentes tinham acabado de cair”.[xxiii] Texto traduzido por: Alexandre Mendes. Notas: [i] Gordon Thomas; Max Morgan Watts, The San Francisco Earthquake. New York: Stein and Day, 1971, p. 64. Consultar também: Philip Fradkin, The Great Earthquake and Firestorms of 1906. University of California Press, 2005. [ii] Thomas; Watts, The San Francisco Earthquake, p. 65. [iii] Idem, p. 67 [iv] Idem, p. 70 [v] Idem, p. 76 [vi] William James, “On Some Mental Effects of the Earthquake,” in Essays in Psychology. Cambridge: Harvard University Press, 1983, p. 333. [vii] Essays in Psychology, pp. 331-32. [viii] Diário de William James, 1906. [ix] R.W.B. Lewis e Linda Simon comentaram sobre o terremoto como o equivalente a uma experiência de guerra para James. Cf. Lewis, p. 553, e Simon, p. 341. [x] William James, A Pluralistic Universe. Cambridge: Harvard University Press, 1977, p. 27. [xi] Para a ideia de Jeremy Bentham de que “cada um deve contar por um e nenhum por mais de um”, consultar Michael Pecter, “The Dangerous Philosopher,” The New Yorker, Sept. 6, 1999, p. 48. [xii] A Pluralistic Universe, 70. A ideia de Fechner de um universo infinitamente cheio e variado faz parte do que foi chamado de tradição do platonismo liberal. Veja meu artigo com esse nome em Simbiose 1, nº 1, abril de 1997. [xiii] Pragmatism, pp. 143-44. [xiv] George Eliot, Middlemarch. Boston: Houghton Mifflin, 1956, pp. 194-95; A Pluralistic Universe, pp. 9-10. [xv] L.P. Jacks, “William James and His Letters,” Atlantic Monthly ,128, Aug. 1921, p. 198. [xvi] Para a influência geral de William James em Bill W. (William Griffith Wilson), um dos fundadores dos Alcoólicos Anônimos, consultar: Nan Robertson, Getting Better: Inside AA. Nova York: Morrow, 1988. A proposta de reconstrução, renovação e mudança repentina, dramática e significativa (na linguagem religiosa, a “conversão”) para um caminho melhor começa, segundo Wilson, com um sentimento de desesperança em relação à cura médica ou psicológica. A carta de Wilson a Carl Jung, de 23 de janeiro de 1961, detalha o início da compreensão de Wilson sobre esse processo. Um amigo de Wilson, Rowland H., tinha ido procurar ajuda com Jung para curar o seu alcoolismo. “Antes de tudo”, escreveu Wilson a Jung, “você lhe falou francamente sobre a desesperança dele no que diz respeito a qualquer outro tratamento médico ou psiquiátrico. Esta sua declaração sincera e humilde foi sem dúvida a primeira pedra fundamental sobre a qual nossa sociedade tem sido, desde então, construída”. “Vindo de você”, continuou Wilson, “alguém que ele confiava e admirava, o impacto foi imenso. Quando ele lhe perguntou se havia alguma outra esperança, você lhe disse que poderia existir, desde que ele pudesse se tornar objeto de uma experiência espiritual ou religiosa, em suma, de uma genuína conversão.” Wilson, então, contou como, depois de ouvir sobre o caso a partir de Rowland H., se dirigiu ao Dr. William Silkworth, que o tratou da mesma maneira como Jung tratou Rowland H. Logo após a sua própria conversão, Wilson leu o Variety de James e disse a Jung: "Este livro me deu a percepção de que a maioria das experiências de conversão, qualquer que seja sua variedade, tem um denominador comum de profundo colapso do ego”. Wilson disse a Jung que o AA “disponibilizou experiências de conversão – de quase todos os tipos relatados por James - quase que por atacado”. Para o texto completo da carta de Wilson a Jung, consultar: http://silkworth.net//aahistory. Para a resposta de Jung, identificando o alcoolismo como um problema espiritual, consultar: C.G. Jung, Letters, vol. 2, Ed. Gerhard Adler e Aniella Jaffe, trad. R.F.C. Hall. Princeton, NJ: Princeton University Press, 1975, pp. 383-85. Sobre Wilson, mais tarde, afirmando “que James, apesar de estar há muito tempo no túmulo, havia sido fundador dos Alcoólicos Anônimos”, consultar Pass It On: The Story of Bill Wilson. Nova York: AA World Services, 1984, p. 124. [xvii] R.B. Perry, Introduction. In: Willam James’s Collected Essays and Reviews. New York: Longmans, Green, 1920, p. ix. [xviii] Citado em: Cornel West, The American Evasion of Philosophy. Madison: University of Wisconsin Press, 1989, pp. 55-56. [xix] William James, Psychology: Briefer Course. Cambridge: Harvard University Press, 1984, pp. 142, 141. [xx] Psychology: Briefer Course, p. 144. [xxi] William James, Talks to Teachers on Psychology. Cambridge: Harvard University Press, 1983, p. 113. [xxii] “On a Certain Blindness in Human Beings,” in Talks to Teachers on Psychology, pp. 134-37. [xxiii] Thomas e Watts, The San Francisco Earthquake, p. 77.